Precariedades e mais além… tornando viável o inédito de uma educação de segunda oportunidade nas trajetórias jovens
- Eunice Macedo, CIIE, Faculdade de Psicologia e de Ciencias de Educacao, Universidade do Porto, Portugal • Alexandra Carvalho
- n. 33 • 2022 • Instituto Paulo Freire de España
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Precariedades e mais além… tornando viável o inédito de uma educação de segunda oportunidade nas trajetórias jovens.
Eunice Macedo
CIIE, Faculdade de Psicologia e de Ciencias de Educacao, Universidade do Porto, Portugal.
Alexandra Carvalho
Como ser educador[a], se não desenvolvo em mim a indispensável amorosidade aos educandos com quem me comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte?
Paulo Freire
Introdução
Amorosidade é um conceito transversal ao trabalho de Freire. Em A Importância do Ato de Ler (Freire, 1989), evidencia que amorosidadeé um ato “de abertura à aceitação e compreensão do outro e do mundo, valorizando essa relação por si e não apenas como facilitadora da aprendizagem.” (Macedo et. al, 2013, p. 136). Na construção do presente artigo, mantemos a amorosidade que pautou a nossa participação investigativa em iniciativas de educação de segunda oportunidade (E2O), em Portugal, e cujas intenções e práticas alimentam esta reflexão sobre precariedades jovens com a preocupação de gerar uma ação editanda(transformadora).
Trajetórias pessoais e escolares marcadas por precariedades mitigam o potencial das pessoas jovens para ser, tendo, muitas vezes, continuidade numa precariedade laboral, que afeta, em particular, estes grupos da população. Argumentamos que, a E2O pode constituir uma forma de superação de situações-limites e instituir-se como inédito viável nas vidas de jovens que foram – ou se sentiram – abandonados pela escola.
Neste artigo, o debate sobre precariedades jovens institui-se no eixo tensional situação-limite de opressão e inédito viável [1], conceitos que, pela sua relevância, selecionamos da ampla produção político-filosófica de Freire. A sua visão esperançosa constitui porta de entrada para discutir a educação enquanto inédito viável, ou seja, processo libertador de situações-limites de opressão. Freire refere: Há uma relação entre a alegria necessária à atividade educativa e a esperança. A esperança de que professor[a] e alunos[as] juntos podemos aprender, ensinar, inquietar-nos, produzir e juntos igualmente resistir aos obstáculos à nossa alegria .
Esta perspetiva, em que se combinam relação, inquietação, co-laboração na invenção de outros mundos possíveis, torna viável o inédito de uma educação libertadora (Macedo, 2021), em que a transmissão de saberes dá lugar à co-produção cultural. Isto implica tanto a busca inquieta de abandonar práticas que reproduzem desigualdades, como a produção de inéditos viáveis nas trajetórias e experiências educativas; uma passagem suportada na partilha e multiplicação de saberes, mundos vivenciais, histórias e expectativas de vida das pessoas e grupos, num cruzamento da diversidade das suas vozes(Macedo, 2018). Assim, conforme Freire (2018), o inédito viável vai além da “consciência real” (ou efetiva), concretizando-se na “ação editanda” (transformadora). Assim, nesta visão freiriana da história como possibilidade, “há uma relação entre o ‘inédito viável’ e a ‘consciência real’ e entre a ‘ação editanda’ e a ‘consciência máxima possível’”. [2], sendo que o inédito viável diz respeito à “possibilidade de perceber mais além das ‘situações-limites’” de opressão (Freire, 2018, p. 109).
Parece interessante acentuar que, na teorização dos “direitos pedagógicos democráticos”, Bernstein (1996, p. 6) refere o direito de realização de si enquanto “compreensão crítica e um sentido de possibilidade”; direito que corresponde “à construção da ‘confiança para agir’, que potenciaria uma mobilidade social ascendente. É corporizado ao nível individual, nos ‘pontos de tensão que condensam passado e abrem futuros possíveis’” (Bernstein cit. in Macedo, 2018, p. 102).
Antevemos relações entre a visão freiriana do inédito viável e este direito – realização de si– na medida em que, como acentua Bernstein, dependendo da criação de condições de confiança no interior das organizações antevê a possibilidade de transcender o potencial individual para tornar-se mais e melhor (Macedo, 2018). Assim, no dizer de Bernstein (1996), ao promover o pensamento crítico acerca de situações sociais, intelectuais ou pessoais inibidores da mobilidade das e dos estudantes, a educação poderia permitir o abandono pelas e pelos sujeitos de uma visão destas situações enquanto “prisões, ou estereótipos” (Ibid). Estas situações são relacionáveis com as situações-limites de opressão descritas por Freire, que muitas e muitos jovens vivenciam nas suas trajetórias. Nesta medida, certas instituições educativas, ao não constituírem espaços de realização de direitos, ficam aquém da sua missão de acolher, proteger e promover a cidadania das e dos jovens.
No quadro de uma educação libertadora, que busca a rutura com a transmissão de conhecimento acabado, a Educação de Segunda Oportunidade (E2O), como medida de “compensação” [3](COM, 2011), tem vindo a assumir essa busca de criação de condições de confiança no seu interior(Bernstein, 1996). Como ação editanda pode permitir que as e os jovens em educação, façam uma emersão crítica a partir das suas trajetórias, inserindo-se e interpretando as suas realidades, enquanto sujeitos autores e autoras da sua história.
As Escolas de Segunda Oportunidade constituem um programa de intervenção com jovens maiores de 15 anos, em situação de abandono da educação e formação, há pelo menos um ano, sem qualificação profissional e sem emprego, em risco de exclusão social (CNE, 2020). Esta oferta socioeducativa foi introduzida em Portugal por uma iniciativa cidadã – a Associação de Educação de Segunda Oportunidade (AE2O) – que cria, em 2008, um projeto piloto: a Escola de Segunda Oportunidade de Matosinhos (ESOM). Apesar de não existir um acompanhamento estatístico das transições educativas e ocupacionais após a saída desta escola, existem indicadores do seu impacto positivo nas vidas jovens (Macedo, Santos, & Araújo, 2018), incluindo a descoberta do seu potencial criativo e de aprendizagem. Mesquita e Hardalova (2019, p. 343) referem:
A força da proposta da segunda oportunidade reside (…) na sua flexibilidade para se dirigir e adequar à versatilidade das necessidades [das e] dos jovens. (…) é um instrumento polivalente, capaz de cumprir diversas funções e de se dirigir a diferentes públicos, em articulação com os sistemas formais de ensino e formação, constituindo-se como uma nova medida ao serviço das políticas públicas de educação e formação.
A Arte como experiência[4] constitui-se como pilar da intervenção socioeducativa que a ESOM desenvolve com o objetivo de implicar jovens em ambientes de aprendizagem não convencionais, onde aprendizagens socioemocionais estão de mão dada com o currículo formal e profissionalizante. A experiência com arte é uma aprendizagem transversal com potencial de desenvolvimento de relações significativas entre jovens e pessoas adultas. O caráter performativo que a aprendizagem adquire pode permitir maior participação democrática no espaço educativo.
A entrada em vigor do Despacho 6954/2019, de 6 de agosto institucionalizou o reconhecimento, por parte do Ministério da Educação, da relevância social da oferta de segunda oportunidade, que apresenta um modelo pedagógico próprio e se articula com a Rede Europeia de Escolas de Segunda Oportunidade [5](CNE, 2020).
Tendo emergido, nos anos mais recentes, algumas escolas deste tipo, de acordo com o despacho, esta modalidade educativa proporciona formação qualificada à população jovem, em articulação com o mercado laboral local, através de um programa integrado de educação e formação (PIEF) [6] ou de um curso de educação e formação para adultos (Curso EFA), para conclusão do 2º ou do 3º ciclo, respetivamente, permitindo a reintegração noutras ofertas educativas e formativas (decreto-lei 55/2018) (CNE, 2020). Assim, a E2O começa a ser reconhecida, a par de outras iniciativas, como forma de facilitar o regresso das e dos jovens à educação e formação (Conselho UE, 2020). Importa referir que as orientações do Conselho da União Europeia (2020) apontam para a criação de um sistema de retorno de informação, pós-colocação, que assegure ofertas de qualidade, impedindo que as e os jovens regressem à situação de NemNem/ NEET [7].
O Conselho Nacional da Educação, num capítulo que explora equidade, esclarece que o número de pessoas inscritas na oferta de segunda oportunidade, em 2019, é de 170 jovens, 68,8% do sexo masculino e 31,2% do sexo feminino. Dos inscritos, 126 frequentavam o PIEF e 44 um curso EFA (CNE, 2020). Destes, 114 são menores de 18 anos, sendo espectável que frequentassem ainda a escolaridade obrigatória (Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto). Referimos já o grupo que abandona antes da conclusão do 2º ou do 3º ciclo como “abandonantes muito precoces” (Macedo, Santos, & Araújo, 2018). Há também jovens neste grupo que, sendo menores de 18 anos, não são incorporados nas estatísticas do abandono precoce da educação e formação (APEF), respeitantes a jovens dos 18 aos 24 anos. De notar ainda que, este grupo incorpora indivíduos que, pela sua idade, são estatisticamente considerados abandonantes precoces e outros (menores de 18 e maiores de 24) que, pela mesma razão, não o são. De forma englobante, podemos estar a falar de pessoas mais ou menos jovens que foram – ou se sentiram – abandonadas pela escola. Face à situação de abandono, admitimos pelo menos três cenários: as pessoas jovens abandonam a escola e não buscam – ou não encontram – outras formas de inclusão na educação; abandonam a educação formal e buscam alternativas como a segunda oportunidade; abandonam e procuram a inserção laboral, num mundo carregado de novas precariedades, como analisamos em seguida. É neste enquadramento que buscamos compreender relações entre precariedades, que mitigam as vidas jovens, começando por lançar um olhar à precariedade laboral.
Precariedade e precariedades: transitando entre situações-limites de opressão
Como se viu, as e os jovens acolhidos na oferta educação de segunda oportunidade são representados, nos documentos oficiais, como seres vulneráveis e em défice, competindo à escola assegurar o retorno à educação, através do desenvolvimento da autonomia e confiança – competências socioeducativas que permitam a inserção na formação, no emprego e na assunção de responsabilidades familiares e parentais. A possibilidade de uma educação mais holística e inclusiva, não pode ser vista como garante de uma inserção laboral posterior, dado o potencial conflito entre as lógicas de racionalidade do mundo da educação e do mundo do trabalho.
Não poderíamos discutir precariedades laborais, que estão no horizonte de jovens em escolarização, sem explicitarmos contornos e significados de emprego e desemprego e o modo como a sua reconceptualização afeta as vidas jovens, n um mundo do trabalho volatilizado (Magalhães & Stoer, 2002) e fortemente imprevisível, o que permite “equacionar a possível atribuição às pessoas jovens do papel de um capital humano transmutável, vendável na Europa, desde que cumpram os padrões estabelecidos” (Macedo, 2018, p. 35). Tais questões surgem exacerbadas no contexto pandémico e de avanço tecnológico, sendo que muitas e muitos jovens são “vítimas dos processos de reestruturação económica” (Pais, 2016, p. 15) sendo forçados a encontrar estratégias criativas de sobrevivência, desenrascanço, face à “substituição de um emprego formal, cuja estabilidade é garantida por benefícios assistenciais, por um emprego precário, informal, autocriado.” (Idem). Isto acarreta forte transitoriedade e aleatoriedadeàs trajetórias profissionais jovens, num cruzamento entre trabalho precário, temporário, parcial, emprego e desemprego.
Para lançar um olhar à precariedade laboral jovem, em Portugal, por relação com o contexto europeu, toma-se como referência o estudo do Observatório das Desigualdades, “Desemprego e Precariedade Laboral na População Jovem: Tendências Recentes em Portugal e na Europa” (Tavares, Cândido & Carmo, 2021), que acentua o aumento do desemprego jovem em Portugal (4,3 pp) e na Europa (mais de 1,7 p.p.), em 2020, sendo que a taxa de desemprego de jovens com menos de 25 anos, atingiu 22,6%, 5,8 p.p. acima da média da UE27, e 5,7 p.p. acima da taxa de desemprego geral. De notar que, neste escalão etário, o desemprego registado em valores absolutos sofreu também um aumento, que não ocorria desde 2012.
Figura 1 – Taxa de desemprego jovem (entre 15-24 anos de idade), 2020, por NUTS2

Fonte: Eurostat (2021).
Em 2020, inverte-se a tendência de diminuição do desemprego dos últimos anos. O desemprego jovem acompanha, de forma mais acelerada, a tendência de desemprego total, aumentando, também em 2020, a taxa de subutilização do trabalho jovem [8], para valores semelhantes aos de 2017.
Acentua-se, com base no mesmo estudo, o aumento em 2020 da percentagem de jovens NemNem (NEET), o que vem na contramão da tendência, em Portugal, desde 2013, e na UE desde 2012.
De forma também relevante para este artigo, que analisa precariedades jovens, Tavares, Cândido e Carmo (2021) referem que, sendo as e os jovens dos 15 aos 24 anos os mais afetados pelo trabalho temporário, nos países da UE27, diminuiu a proporção de jovens nestas condições contratuais entre 2019 e 2020. No entanto, em Portugal, existem ainda, em 2020, 56% de jovens com contratos temporários, um valor que sendo muito elevado, fica abaixo do valor em Espanha, com 69%. Portugal é o 5º país da UE27 com níveis mais elevados de trabalho temporário involuntário.
Estes autores associam a recente redução da percentagem de jovens com contratos não permanentes a um quadro pandémico em que os processos associados ao aumento do desemprego, afetaram primeiro as situações contratuais mais frágeis; para além disso, na maioria dos países da UE27, incluindo Portugal, o trabalho parcial é também mais frequente no grupo dos 15 aos 24 anos, apesar da diminuição em 2020. Portugal é o 7º país com mais jovens em trabalho a tempo parcial, por falta de alternativas; a situação das mulheres jovens na UE assume também certa fragilidade pois, proporcionalmente, têm mais contratos temporários e trabalham mais a tempo parcial, quando comparadas com os jovens. (Tavares, Cândido, & Carmo, 2021).
Para os propósitos deste artigo, é também importante acentuar que, em 2020, em Portugal, estando a taxa de emprego para jovens dos 15 aos 24 anos nos 23,4%, e sendo o peso do emprego masculino (25,5%) superior ao feminino (21,2%), a taxa de emprego é superior para os jovens mais qualificados: para indivíduos com 15-24 anos com o ensino superior, a taxa situava-se nos 40,4% (mesmo tendo diminuído 8 p.p. relativamente a 2019); para os jovens com o ensino secundário, a taxa de emprego era de 31,4% (uma diminuição de 6,8 p.p. face a 2019) e com o ensino básico, de 10,7%. (menos 3,1 p.p.). (ibid, p. 23)
Havendo uma articulação relevante entre o, chamado, sucesso académico e exercício profissional, há que ter em conta que,
A retórica dominante dos sistemas educacionais impõe [às e] aos jovens modelos abstractos de obediência, perseverança, ambição, responsabilidade, confiança... […] virtudes que caracterizam um jovem de sucesso. […] Mas o sucesso não é para todos; por isso alguns jovens não embarcam em retóricas sem crédito. […] Não se trata de resignação, mas de uma certa consciência das realidades que apontam como o melhor caminho o do desenrascanço [9].
(Pais, 2016, p. 16)
Poderia então admitir-se que o descrédito jovem no sistema educativo e o abandono precoce da educação e formação poderão constituir manifestações de cidadania jovem. Ou seja, abandonantes, abandonados ou sentindo-se abandonados pela escola, como situação limite de opressão, assumem a sua inserção crítica na realidade, buscando uma ação transformadora que pode incluir a busca de inserção laboral ou outras estratégias criativas. Esta opção pode, no entanto, assumir consequências individuais e sociais preocupantes para os processos de inclusão social.
Com esta preocupação, interessa realçar que Portugal apresenta um resultado baixo na relação entre a educação e a mobilidade ocupacional, sendo que a mobilidade social através da educação é a mais baixa entre os países da OCDE (OCDE, 2018). Além disso, e apesar de reformas que visam melhorar as qualificações e reduzir o abandono da educação e formação as possibilidades de as pessoas jovens terem uma carreira de sucesso dependem fortemente do seu contexto socioeconómico ou do nível de capital humano das suas famílias, associado ao seu nível de qualificação. É também importante enfatizar que, em muitos países da Europa, as pessoas nos escalões salariais mais baixos têm pouca oportunidade de mobilidade social ascendente. Em Portugal, pode demorar cinco gerações para uma criança de uma família com um nível salarial baixo atingir um salário mediano, um número de gerações próximo da média da OCDE (4,5) (OCDE, 2018). Sendo a situação laboral jovem informada por um conjunto de situações-limites de opressão, questionamos se e como a educação de segunda oportunidade, poderá facilitar, no presente, futuros horizontes profissionais, não se limitando a esse fim.
Jovens concretos em condições concretas… para uma ação transformadora
Recentemente, foi criado um conjunto de escolas de segunda oportunidade. A observação situou-se num desses contextos em fase de implementação que, como projeto educativo compensatório, buscava sentidos e lugar. Do “público-alvo” (sic), que retoma a trajetória educativa na educação de segunda oportunidade (E2O), fazem parte jovens dos 15 aos 25 anos que abandonaram a educação/formação com baixas qualificações. Risco de exclusão social, falta de hábitos de estudo e de motivação, desemprego ou precariedade laboral são identificados, nos documentos consultados [10], como atinentes a estes jovens, frequentemente sinalizados por entidades com competências em matéria de infância e juventude, como Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) ou/e Equipas Multidisciplinares de Assessoria aos Tribunais (EMAT).
A construção de “mapas de vida” [11] evidenciou que os documentos descrevem condições como baixas qualificações e abandono escolar, dificuldades de integração escolar, social, ocupacional e profissional, falta de competências ou motivação... Expressões como “desviantes”, “pequena delinquência”, “consumo de drogas”, “ausência de projetos profissionais e de vida”, parecem atribuir a estas e estes jovens a responsabilidade pelas suas circunstâncias. Estas constituem, no entanto, situações-limites de opressão que necessitam de tomada de consciência para uma ação transformadora, assente na passagem da consciência realà consciência crítica.
São ainda descritos problemas do foro emocional, psicológico e/ou psiquiátrico que, na nossa perspetiva, podem ser vistos como sintomas de problemas macrossociais e meso-institucionais que afetam as vidas jovens. Estes vão além da individualização casuística, que se situa ao nível da consciência real quase mágica e inquestionada (Freire, 1975). Surge uma compreensão mais contextual na identificação como pais e mães jovens, da falta de retaguarda familiar, da aplicação de medidas de promoção e proteção ou tutelares educativas, bem como a sinalização por entidades como as referidas e a pertença a grupos minoritários, por orientação sexual ou situação de migração.
No contexto educativo concreto, a oscilação no corpo discente ao longo do ano, pode ter produzido alguma instabilidade no grupo. Entradas e saídas terão perturbado equilíbrios ainda frágeis, introduzindo novas estranhezas. Estes (des)equilíbrios não eram alheios à atenção das e dos profissionais que procuravam ir endereçando cumplicidades e conflitos, na falta de orientações claras, em termos de procedimentos em ‘momentos de crise’, o que requeria atenção.
Nos anos letivos em foco, das 26 pessoas jovens, apenas nove eram raparigas, sendo de realçar, em termos de género, que as quatro conclusões do 9º ano de escolaridade e encaminhamento para cursos profissionais foram todas de raparigas. Dos restantes jovens, 11 pretendiam frequentar oferta educativa similar no ano letivo seguinte e, dada a sua idade, um rapaz pretendia um curso EFA, bem como uma jovem. Um dos rapazes, não tendo concluído o 9º ano, não iria reingressar, dada a emigração da família. Os restantes seis jovens saíram ou foram transferidos. Assim, apesar das incertezas nas suas vidas, alguns rapazes sonham e projetam-se no futuro e algumas raparigas conseguem um percurso legitimado pela escola.
Os mapas de vida, como potencial instrumento de intervenção socioeducativa a desenvolver com o envolvimento jovem, permitiram, assim, identificar continuidades e singularidades nas suas vidas. Como continuidade, ganham relevância transições entre contextos e lugares, exigindo das pessoas jovens sucessivos ajustamentos e construções de sentidos, relações, modos de vida. Em alguns casos, essas situações decorrem de processos de migração em busca de condições de vida aceitáveis e fugindo, por vezes, de contextos agressores. Noutros, trata-se de transições entre escolas, implicando ajustamentos a novas regras e espaços, a novos pares, docentes e funcionários, modos de ensinar e aprender, sem tempo para a consolidação da experiência. Pontualmente, a trajetória escolar parece desenvolvida com certa tranquilidade, por exemplo, com frequência de apenas duas escolas e com a primeira retenção escolar já em fase tardia.
Há condições não relacionadas com o “efeito escola” (Lopes, 2005) que têm impacto nas trajetórias jovens, ilustrando a intersecionalidade das suas vidas. Acompanhamento familiar irregular, conflitos intergeracionais, violência, substituição às responsabilidades familiares de adultos ausentes, convívio com o alcoolismo dos pais, domínio precário da língua portuguesa, e uma herança que não vê o investimento na escola como prioridade, fragilidade emocionais e/ou de saúde, institucionalização… fazem parte dos dicionários sobre estas e estes jovens, de forma muitas vezes cumulativa e estigmatizante. Estas condições de precariedade, são transformadas em “desigualdades educativas, gerando por consequência, novas vulnerabilidades, que vão da estruturação de fileiras duais da escolaridade, ao insucesso e abandono escolares e à produção dos “excluídos do interior” (Diogo, Trevisan, & Sarmento, 2021, p.28-29).
Apesar das dificuldades que enfrentam nas suas trajetórias, coartando os seus direitos de cidadania e a cidadania como direito, alguns destes e destas jovens investem na sua construção como sujeitos autores e autoras da sua história(Freire, 2018). Alguma irreverência e irrequietude situam-nos como jovens dos nossos tempos que requerem das e dos adultos, que os rodeiam, envolvimento na relação e compreensão dos seus percursos como jovens em construção de cidadania, neste período das suas vidas (Macedo, 2018).
Precariedades contextuais que informam trajetórias jovens numa escola de segunda oportunidade [12]
Foi a situação de precariedade de jovens – muitas vezes, maltratados pela vida e pelos percursos escolares – que levou à frequência de uma medida compensatória. Ultrapassado o “cabo das tormentas” de trajetórias desafiadoras que leva a que estas e estes jovens se constituam como sobreviventes e resilientes, abre-se caminho a nova esperança na educação?
É atinente referir que apesar dos muitos avanços, a gestão das diferentes precariedades, e da sua combinação, é o maior desafio, ficando aquém de realizada esta segunda oportunidade concreta. Entre os avanços visíveis, destacamos a redução do absentismo escolar jovem, apesar de se manter problemática. Relevamos também o aumento da capacidade de aproximação da escola às e aos jovens, e alguma mobilização jovem em tempo de pandemia, via autoestrada digital, como acentuaram alguns e algumas jovens. Destaca-se também, em formato presencial, o projeto coletivo de produção de um vídeo, que envolveu uma visita de estudo; bem como atividades de movimento e produção musical. É também de dar relevo à adesão jovem às atividades de artes visuais e a crescente adesão a uma disciplina ligada às questões ambientais.
Acentua-se ainda o maior cuidado na produção de registos pela equipa técnica e por uma das formadoras, cujo trabalho incluiu consulta aos jovens e elaboração de um pequeno estudo, bem como a atenção mais individualizada a um jovem, na língua portuguesa. De forma marcante, e particularmente nas áreas de movimento e expressão, algumas vozes docentes desviam-se de visões mais convencionais sobre educação, apreciam as e os jovens na sua diversidade e valorizam a sua adesão e participação nos trabalhos.
Evidenciamos alguns avanços na implementação da escola, e deixamos, provavelmente, por referir muitos outros. Analisamos, em seguida, um conjunto de precariedades que se cruzam na vida da escola, trazendo dificuldades e limites à experiência educativa relacional de profissionais e de jovens. Estas necessitam de atenção para tornar viável um quefazer inédito da escola e da educação.
A precariedade em termos de espaço teve implicações na relação pedagógica, obrigando à dinamização de aulas no exterior, face às quais as e os jovens se sentiam inibidos e desviados do foco na aprendizagem, ensaiando vida, num palco, observados e perturbados por quem passava e pelo contexto. Acrescenta-se às dificuldades do exercício pedagógico a incerteza e a imprevisibilidade. As dimensões reduzidas da (única) sala de aulas, as portadas para o exterior, não propiciavam um ambiente acolhedor e tranquilo, havendo passagem e saída de profissionais, no decurso das aulas. A sala de convívio-cantina-sala-de-aula é também limitada, sendo que entradas súbitas de profissionais desviam a atenção ou perturbam o convívio entre jovens. O espaço das oficinas, que prometia maior liberdade de movimento, manualidades e participação em jogos, como construção de uma relação social mais saudável, sendo partilhado com a comunidade, estava frequentemente ocupado, sendo o grupo jovem empurrado para aqui ou para ali, em função do espaço disponível.
A busca de informalização na relação pedagógica, para cativar as e os jovens, exigia um esforço acrescentado de respeito e responsabilização, de parte a parte, não podendo ser confundida com um ambiente em que ‘vale tudo’, ou em que as dinâmicas da vida adulta se sobrepõem às de uma aprendizagem participada. Face a isto, como pedir mobilização jovem?
A manutenção de um ‘modelo demasiado escolar’ poderá incluir-se entre as razões do absentismo jovem e da fraca adesão às atividades. A atribuição continuada de incumprimento (das regras, dos trabalhos da aula, dos trabalhos de casa) com responsabilização das e dos jovens, gerava frustração nas e nos docentes. O ciclo de insatisfação reproduzia-se e multiplicava-se num crescendo a que foi difícil escapar, na falta de outras modalidades relacionais e de trabalho.
A precariedade das e dos profissionais era marcante. Trabalhavam em escolas distintas, com culturas distintas incluía a, aparente, dificuldade de conciliação entre culturas. As e os profissionais eram desafiados à reconfiguração de uma profissionalidade, muitas vezes assente em ‘velhas’ rotinas do fazer que resistem à transformação. Apesar de avanços notórios em parte da equipa que já construíra a experiência no ano anterior, a prevalência de culturas profissionais territoriais fechadas continuou. Assim, a tentativa de construção de um currículo integrado, no quadro da interprofissionalidade e da interdisciplinariedade, numa construção conjunta e com significado, continuou a ser objeto de resistência… Dificuldades de acesso a – e de conciliação entre – diversas plataformas de comunicação parecem ter dificultado mais esse processo, embora trazendo a promessa de melhor realização para o futuro.
A falta de tempo, inclusivamente por ‘viajarem’ entre escolas, acumulando o tempo das deslocações com o tempo do exercício profissional, condicionou também a resistência à mudança, parecendo alimentar rotinas que tendiam a não funcionar com jovens que já experimentaram o insucesso nessas modalidades. Além disso, a escassez de tempo para a planificação conjunta da ação pedagógica de construção do conhecimento pareceu resultar numa gestão complicada do trabalho direto com as e os jovens. Observaram-se momentos de aparente não saber quefazer por profissionais que, partilhando o mesmo tempo de ação, não tiravam partido dele.
Assim, a tentativa de trabalho em pares-pedagógicos, já realizada no ano anterior, revelou-se residual. Numa convivência, mais ou menos conflitual entre lógicas de trabalho pedagógico e relacional, se, em alguns casos, parecia que cada profissional tinha uma visão do que funcionava, e não funcionava, e do que é (ou deve ser) a educação, noutros, parecia haver carência de propostas. A situação foi agravada pela divisão da turma em dois grupos, face à pandemia, em que, por vezes, o trabalho direto com jovens decorria quinzenalmente.
A redução da formação entre profissionais, e a sua realização online constituiu também um constrangimento à construção de uma cultura de escola, mais baseada em princípios de escuta e de flexibilidade, atentos às vozes jovens e que se modificasse para as e os acolher. Essa falta de um fórum de debate, desabafo partilha e construção coletiva, conduziu à redução da colaboração entre docentes, prevalecendo nos encontros online, silêncio ou queixa de incumprimento jovem. Atitudes de menor ou maior abertura à diversidade, a par da ‘natureza’ distinta das diferentes disciplinas, tiveram influência clara nos resultados e na avaliação das e dos estudantes. Parecendo deixar-se um pouco de fora o foco socioeducativo desta oferta e a valorização das competências que as e os jovens vão adquirindo e mostrando no dia a dia, o foco num currículo mais prescritivo, reduziu as possibilidades de uma avaliação mais positiva dos percursos e aprendizagens jovens.
Perguntamo-nos como estimular uma cultura de co-laboração e de co-construção do currículo, como expressão das vidas jovens na escola. Há muito caminho a traçar na escuta mútua e conciliação criativa entre lógicas diversas, no sentido do superior interesse destas e destes jovens. Neste enquadramento, parece também ainda frágil, neste contexto, a realização do previsto no PIEF [13]:
organização dos vários domínios em torno de temas aglutinadores recorrendo a metodologias que privilegiem a diferenciação pedagógica, nomeadamente a de trabalho de projeto ou outra que respeite as especificidades associadas à implementação de cada Plano de Educação e Formação, permitindo desenvolver as aprendizagens dos vários domínios da matriz curricular do tipo de PIEF frequentado pelo aluno.
(DGE, s.d., p.4)
E como exigir de profissionais que são objeto destes desafios que se automobilizem para transformar os seus processos e estratégias de ensino, criar materiais mais apelativos, escutar as e os jovens e construir o currículo em torno dos seus interesses e questionar a sua profissionalidade?
Endereçar e resolver as questões apontadas, implica, particularmente, a construção de um projeto socioeducativo com as pessoas jovens, que vá além da proposta pontual de atividades, constituindo-se como um todo coeso e com sentido, atento a jovens, às suas condições e saberes. No quadro de uma educação libertadora, tal projeto poderá potenciar o reforço de uma cultura de escola assente em princípios de democracia e justiça educativa e social, bem como em estratégias pedagógicas diferenciadoras que abram espaço ao exercício desses princípios, no quadro de uma cidadania com voz (Macedo, 2018).
É atinente uma alocação de recursos e condições adequadas para o retorno de jovens à educação aconteça como processo formativo conjunto, entre profissionais, jovens, corpos diretivos e comunidade. Há que atender a que a cooperação é particularmente importante na E2O, na qual as e os jovens, muitas vezes, enfrentam condições sociais adversas e exigem apoio mais abrangente, exigindo à escola que se abra à cooperação com outros profissionais para reduzir o APEF (COM, 2011). Há que ter em conta que:
Se a relação que havia antes entre a estrutura dominadora e as formas de perceber a realidade e de atuar nela está desaparecendo, isto não significa que as negatividades da “cultura do silêncio” hajam perdido sua força condicionante […]. Seu poder inibidor permanece […] como algo concreto, interferindo no quefazer novo que a nova estrutura demanda […].
(Freire, 1977, p.33)
A consciência de precariedades, como situações-limites de opressão que informam as vidas de jovens e profissionais, resulta na reflexão crítica sobre elas e na possibilidade de formular uma ação transformadora, que acione o quefazer novo que as estruturas de segunda oportunidade reclamam para a sua ação editanda.
A E2O enquanto inédito viável mais profícuo nas vidas jovens
Estabelecemos o debate no eixo tensional entre situações-limites de opressão, que situam a educação de segunda oportunidade como precariedade, e o inédito viável da E2O na sua expressão libertadora. Reconhecendo as “boas intenções” na legislação portuguesa, torna-se fundamental a rutura com o estigma relativo a uma oferta educativa corporizada, nomeadamente, nos cursos PIEF e EFA, inerente à própria lei quando distingue “ensino regular”, vocacionado para prosseguir estudos, e modalidades profissionalizantes. Às últimas surge associada menor cientificidade e maior pendor prático. Essa estigmatização
Consolida-se através das orientações explícitas e implícitas apontando estes cursos como alternativa aos alunos com aproveitamento mais baixo ou com um trajeto de insucesso escolar acumulado. (…) às expectativas criadas visando a viabilização destes cursos nem sempre correspondem as oportunidades de inserção no mercado de trabalho por claro desajuste entre os conhecimentos e competências prescritas e as necessidades das empresas e demais empregadores.
(CNE, 2017, p. 31)
Apesar destes limites, a E2O pode constituir um pilar de transição para jovens se tornarem atores e atoras das suas trajetórias educativas e sociais. Não sendo uma “panaceia” para todas as pessoas jovens, reconhece-se como benefício fundamental a construção do seu capital social, pelo desenvolvimento de competências sociais, de um saber agir com autonomia, novas amizades, melhoria das relações e o contacto com a comunidade (Ross & Gray, 2005). Nessa medida, a E2O potencia participação sustentável das e dos jovens no prosseguimento de estudos e na entrada no mercado de trabalho (Savelsberg, Pignata, & Weckert, 2017).
Argumentamos, com Freire (1991), que se a mudança é difícil, é também possível e urgente, no horizonte de um inédito viável na educação e nas vidas jovens. Uma E2O na sua expressão libertadora poderá assim, fazer parte da
edificação da escola democrática como utopia realizável de uma instituição não reprodutora das desigualdades, mas promotora da cidadania, (e.g. Fielding & Moss, 2011) […]. [sendo] na transformação das condições de estratificação social e de desigualdade social que a vulnerabilidade estrutural da infância pode ser profundamente desafiada.
(Diogo, Trevisan, & Sarmento, 2021, p. 29)
Objetivando romper com a estigmatização e contribuir para a construção de uma escola mais democrática, partilhamos, em seguida, um conjunto de orientações, sustentadas na ação e na reflexão sobre ela eventualmente, profícuas para tornar mais viável o inédito da E2O, nas vidas jovens. Isto implica recontextualização, atenta a pessoas concretas em contextos concretos e a criação de espaços para a expressão da diversidade das vozes (Macedo, 2018). Assim, reclamam-se “novas relações humanas, características da estrutura recém-instaurada e baseadas numa realidade material diferente, [que] sejam capazes de criar um estilo de vida radicalmente oposto ao anterior.” (Freire, 1977, p. 33). Assim, uma ação editanda de rutura com a “cultura do silêncio”, pode:
- assumir que todas, todos e cada jovem são da responsabilidade de cada profissional e da equipa como um todo, tendo direito a ver respeitada a sua privacidade e valorizadas as suas cidadanias em construção;
- garantir, a jovens e profissionais, espaço de participação na cultura da escola e apoio à sua construção, tendo em consideração a sua voz – interesses e saberes para além do currículo formal – potenciadores de aprendizagens do ser mais;
- ter em conta as condições de precariedade jovem, na complexidade das suas trajetórias e circunstâncias de risco, antecipando situações de conflito, dificuldades de foco e aprendizagem, para agir de imediato evitando o agravamento, face a esses sintomas;
- equacionar que, apesar – e por causa – dessas circunstâncias, vindo à escola, as e os jovens investem no presente e no futuro, tendo oculto um potencial que é preciso fazer desabrochar e fortalecer;
- garantir condições de espaço que dignifiquem jovens e docentes, a relação pedagógica e as aprendizagens, para tirar o máximo partido do potencial humano e das relações de aprendizagem;
- dignificar os espaços/tempos de aprendizagem, incluindo recursos, salas de aula/formação de dimensões e com materiais adequados, espaços de lazer no interior e no exterior, cantina, bar, e uma sala de trabalho/ reuniões; tornando-os apelativos e respeitando-os como momentos ‘sagrados’ de construção relacional e pedagógica de saberes;
- garantir tempo adequado de trabalho com as e os jovens que permita a construção de relações de proximidade e desenvolver saberes com sentido, na expectativa de criação de um currículo efetivamente diferenciado e individualizado, como previsto nos Planos de Educação e Formação;
- construir modalidades relacionais e pedagógicas mais abertas e flexíveis, mediadas pelas artes, assentes na interdependência, na interdisciplinaridade, no prazer de fazer e na produção de materiais facilitadores das aprendizagens;
- estabelecer espaços/tempos para planificação em pequenos grupos de profissionais e pares pedagógicos para uma construção mais holística do conhecimento;
- investir em processos de intervenção socioeducativa interprofissional e interdisciplinar, tirando partido dos diferentes saberes profissionais, recorrendo a facilitadores e a meios de comunicação viáveis com centralidade jovem;
- garantir o debate interno entre profissionais, como reforço da profissionalidade e rede de suporte para enfrentar desafios e reconhecer avanços;
- abrir a escola à comunidade e grupos profissionais, que contribuam com saberes e experiências específicos para reforçar as aprendizagens jovens.
Na assunção desta ação editandaé crucial considerar que a chamada “rebeldia” das e dos jovens pode emergir e ser canalizada para superar situações-limites de opressão que tenham vindo a experienciar, pois…
A rebeldia é ponto de partida indispensável, é deflagração da justa ira, mas não é suficiente. A rebeldia enquanto denúncia precisa se alongar até uma posição mais radical e crítica, a revolucionária, fundamentalmente anunciadora. A mudança do mundo implica a dialetização entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio de superação, no fundo, o nosso sonho. (Freire, 1996/2004, p. 79)
Para concluir… da denúncia ao anúncio
Apesar do potencial e dos impactos positivos que a E2O pode assumir, como experiência, a falta de condições pode reproduzir situações-limites de opressão, das quais emergem novas formas de precariedade que, em alguns casos, não suportam – antes parecem dificultar – as trajetórias jovens. A atribuição de recursos, a melhoria dos espaços físicos das escolas, a constituição corpos docentes sólidos, e maior abertura às vozes jovens constituem condições fundamentais para rutura com o ciclo de precariedades nas trajetórias de vida jovens, incluindo a sua educação e experiência laboral.
A oferta socioeducativa de segunda oportunidade tem cariz transitório e de apoio às trajetórias jovens; uma “ponte de passagem p’ra outra margem” [14], a (re)integração em formação ou emprego e a imaginação de uma vida outra possível com felicidade e realização, nos seus mais diversos sentidos. Enquanto inédito viável, a E2O vai além de uma ideia de responsabilização das e dos jovens pelos seus fracassos escolares e de vida, e desenvolve uma compreensão contextual das suas condições. Contrariamente à visão de défice, esta perspetiva mais holística e inclusiva valoriza o potencial de cada jovem e reconhece a necessidade de ir além da escolarização, no sentido mais formal, para compreender e endereçar outros contextos da sua vida social. Estes incluem desde as questões familiares, à saúde, à sustentabilidade económica, habitação, relação com a justiça, o emprego e a formação.
Nesta oferta socioeducativa adquire relevância um currículo integrado, construído com cada jovem e promotor de experiências diversificadas e ajustadas. Esta opção suporta a ideia de que não chega o discurso sobre o abandono precoce de educação e formação nem sobre as medidas para o reduzir, torna-se urgente uma ação editanda/ transformadora, que potencie o retorno à educação e a experiência de sucesso no quadro de uma cidadania jovem com voz (Macedo, 2018). Isto implica a passagem de uma visão ingénua, quase mágica sobre as realidades individuais, patente na consciência real acerca das pessoas jovens, a uma consciência crítica transformadora como inédito viável construído por e com jovens. A passagem tensional de situações-limites de opressão observadas num contexto de E2O, ao (re)conhecimento de si, enquanto sujeitos, por parte das pessoas jovens, pode gerar uma construção narrativa com potencial de empoderamento.
Q uando a E2O, na sua expressão libertadora, viabiliza as cidadanias jovens, abre caminho e torna viável o inédito de experiências educativas que, enfrentando precariedades, as conseguem gerir através de uma abordagem relacional com artes e centrada em direitos. Nesta perspetiva, faz sentido o recurso a parcerias na comunidade, com a escola regular, com entidades do poder local e empresarial, numa visão estratégica e de abertura que busque medidas mais concertadas e adequadas.
Terminamos, acentuando que a E2O pode constituir uma segunda oportunidade para jovens, mas também para docentes, formadores e formadoras, investigadores e investigadoras, bem como para o sistema educativo, como um todo, para a re-criação das conceções de mundo, educação, sujeito educativo, currículo e dimensão relacional da pedagogia, trazendo centralidade à mudança social humanizante.
Referências
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[1] Conceito que Lima (2019), por exemplo, identifica como central na obra Pedagogia do oprimido.
[2] Freire distingue consciência real(expressão de Goldman), consciência transitiva e consciência máxima possível. A primeira, das pessoas oprimidas, imersas como objetos em estado de desumanização e sobrevivência, é mágica, a-histórica, intransitiva e individualizada, já a segunda, permite às pessoas, em processo de conscientização, emergir na sua realidade, compreendendo-a como partilhada com outras pessoas, embora ainda no quadro de uma visão ingénua e simplista. Por sua vez, a consciência máxima possível permite a inserção crítica na realidade e a sua interpretação sobre ela, enquanto sujeitos humanizados, o que abre espaço à ação transformadora (Macedo et al., 2013).
[3] Medidas que oferecem a jovens a oportunidade de retorno à educação e formação, na qual a educação de segunda oportunidades se enquadra.
[4] Título de um livro de John Dewey (1934/2005) que pensamos pode expressar o cotidiano que a escola tenta promover.
[5] European Association of Cities, Institutions and Second Chance Schools
[6] O PIEF foi criado no âmbito do Plano para a Eliminação da Exploração do Trabalho Infantil (PEETI), cf. Despacho Conjunto n.º 882/99, de 28 de setembro (revogado), revisto pelo Despacho-Conjunto n.º 948/2003, de 25 de agosto.
[7] Not in Education, Employment, or Training.
[8] O cálculo da taxa de subutilização resulta da soma da taxa de desemprego, do subemprego do trabalho a tempo parcial; dos inativos à procura de emprego, mas indisponíveis; e dos desencorajados, inativos disponíveis para trabalhar, mas não procuram trabalho. Ou seja, “estatisticamente classificadas como sendo de emprego, desemprego e inatividade.” (Tavares, Cândido, & Carmo, 2021, p. 17-18)
[9] “processos nos quais [as e] os jovens colocam em jogo uma pluralidade de estratégias que expressam a sua capacidade de gerar formas próprias de ganhar dinheiro ou de ganhar a vida, (…) em terrenos de marginalidade, substancializando culturas de aleatoriedade e de improvisação.” (Pais, 2016, p. 16)
[10] Consultou-se documentação diferenciada: “Fichas de caracterização e diagnóstico”, “Ficha de sinalização”, “Proposta socioeducativa” e “Informação escolar” de janeiro, março e maio, “Registos de avaliação e faltas” do Agrupamento de Escolas; informações da equipa técnica, nos encontros formativos e, em alguns casos, documentos de “Sinalização de situação de risco/perigo” e de “Registo de ocorrências”.
[11] Vistos “como interpretação e reconstrução das experiências jovens ” (Pinheiro, 2020, p. 251), que permite uma melhor compreensão das suas singularidades, a partir da análise de documentos, facilitados pela instituição.
[12] Nesta seção apoiamo-nos num relatório de acompanhamento, elaborado a pedido da instituição, o qual não é citado para garantir anonimato. Foi construído um olhar, necessariamente parcelar, baseado em observação participante e realização de conversas intencionais com profissionais e jovens durante mais de um ano letivo, co-laborando na construção do projeto, por solicitação da escola.
[13] Cf. ponto 4 (Despacho Conjunto n.º 948/2003), Princípios subjacentes ao Plano de Educação e Formação (PEF): individualização, acessibilidade, flexibilidade, continuidade, faseamento da execução, celeridade e atualização.
[14] Toma-se aqui de empréstimo o refrão do tema Ribeira, do grupo musical Jafumega, da década de 1960, que celebra a passagem sobre o rio Douro, do Porto para a cidade vizinha, Gaia –Mãe-Terra , elemento essencial gerador… É esse potencial radical que se pode trazer às vidas jovens na e através da experiência educativa.