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vol 4 • 2009

O desafio e a paixão de aprender

O desafio e a paixão de aprender

No âmbito da arte de educar, inspirado no texto de Paulo Freire:
“Não há docência sem discência” e dedicado a João Francisco de Souza [1]

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Oscar Jara H.[2]

“Quem disse que o educador não tem a responsabilidade de ensinar,
é demagogo ou mente ou é incompetente…
mas a questão é saber
se o acto de ensinar acaba por si só
ou, se pelo contrário, o acto de ensinar
é apenas um momento fundamental da aprendizagem…”

Paulo Freire

Neste artigo, queria partilhar algumas ideias e convicções em relação a alguns elementos centrais, ou melhor, radicais[3] da vida e da obra de Paulo Freire respectivamente à tarefa criativa de aprender: a aprendizagem como um desafio; o prazer por criar e construir aprendizagens; a aprendizagem como incentivadora de paixão e compromisso vital com a transformação.

Estas ideias são inspiradas numa recente releitura do capítulo “Não há docência sem discência” do livro “Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários à prática educativa” de Paulo Freire. Este livro foi elaborado para ser auxiliar na formação docente, formulado a partir da opção de contribuir para a formação de educadores e educadoras críticos e progressistas, mas também aberto a educadores conservadores, na medida em que são “saberes requeridos pela própria prática educativa”. Ou seja, é a prática educativa que requer os saberes necessários por parte dos e das docentes. Não são saberes abstractos e gerais para qualquer pessoa, mas sim saberes exigidos a partir dos temas, problemas e situações concretas que os educadores e educadoras vivem no dia-a-dia. Por isso, “pedagogia da autonomia” é um livro elaborado a partir do diálogo e para o diálogo entre educadores e educadoras, na medida em que utilizamos a nossa prática educativa como fonte e destino desta produção de saberes.

Sublinha que todos os 27 subtemas dos três capítulos do livro se referem às “exigências” do “ensino”. Ou seja, são, definitivamente, condições que tornam ou não possível o ensino. Sem elas, não é possível ensinar. Estas exigências existem “antes” de se pôr em prática o ensino. Não são os resultados do que o ensino produz ou deve produzir. Não são a execução de umas determinadas regras ou métodos de ensino. Não. Pelo contrário. São requisitos necessários, fundamentais, indispensáveis para que se torne possível ensinar algo a alguém. Como tal, não são uma “receita” nem um conjunto de normas que têm de ser aplicadas formalmente ou mecanicamente. São fundamentos, critérios, perspectivas, opções, posicionamentos, convicções que estão na base que dá sentido ao ensino, como “um momento fundamental da aprendizagem”, como um momento da prática educativa.

Esta perspectiva opõe-se radicalmente à que habitualmente marca as preocupações de muitos professores e professoras, de muitos educadores e educadoras populares, quer trabalhem no âmbito da escola formal, em contextos não formais ou fora de espaços propriamente educativos: a de pesquisar ferramentas, técnicas, métodos com passos bem delimitados e estruturados, orientações prontas para aplicar e, desta maneira, cumprir com os requisitos de uma “boa prática” educativa. Querem algo que já esteja “pronto para aquecer e servir” e não algo que requeira esforço criativo de “inspirar-se para cozinhar”.[4]

Isto também aconteceu com a aproximação de muita gente à obra de Paulo Freire. Durante muito tempo, e até hoje inclusive, se tem falado do “método Paulo Freire” como se fosse esta a sua contribuição principal, vinculando-o ao método psico-social de alfabetização e reduzindo a contribuição pedagógica de Freire a esse método. Creio que esta deve de ser uma das piores deformações da sua obra e da sua forma de pensar.

É óbvio que Paulo Freire tem contribuições metodológicas fundamentais. É obvio que a sua proposta metodológica de alfabetização constituiu uma revolução respectivamente aos métodos que se utilizavam anteriormente, mas isto é apenas uma pequena parte das suas contribuições. Além disso, as suas contribuições metodológicas são apenas consequência das suas contribuições filosóficas, da epistemologia dialéctica e libertadora que caracteriza a sua pedagogia.

Por isso, apesar de Freire ter frases tão precisas, claras e convincentes, que faz com que as utilizemos frequentemente, não poderemos encontrar nelas nenhuma “receita”, mas sim o contrário: afirmações, questões, perguntas e inspirações que problematizam as nossas práticas e desta problematização encarregamo-nos de convertê-las em exigências para uma nova prática educativa.

Por isso, estes “saberes necessários para a prática educativa” não são uma série de critérios, de técnicas, de orientações didácticas para colocar em prática, mas sim um conjunto de princípios ético-políticos, epistemológicos e filosóficos que nos levam a olhar com outros olhos a nossa própria prática, obrigando-nos a mergulhar nas raízes do seu sentido e a renová-la crítica e criativamente. E tudo isto, de uma maneira, talvez a melhor, a formar-nos como docentes: homens e mulheres nos quais nos formamos a partir das nossas práticas como sujeitos capazes de organizar processos de construção de conhecimentos, ou seja de ensinar, porque desenvolvemos as nossas capacidades de aprender.

“Professores” e “alunos”: a aventura de desafiar e de sermos desafiados

Uma das principais contribuições críticas de Freire à pedagogia, que fez com que toda a lógica do processo ensino-aprendizagem fosse repensada, gira à volta da afirmação de que não é possível transmitir ou transferir conhecimentos de uma pessoa para outra, afirmação central onde se sustenta toda a visão “bancária” da educação. E não é possível porque a transmissão unilateral de informação, que é logo memorizada e repetida, não constitui um facto educativo nem produz realmente conhecimento. Tal não é possível, porque o conhecimento é sempre um processo activo no qual as pessoas acedem às novas informações a partir das informações que já possuem, desenvolvendo processos de identificação, associação, símbolos, generalização, reafirmação ou negação entre os velhos conhecimentos e as novas informações.

É por isso que desde a educação popular concebemos a aprendizagem como uma tarefa criativa onde se constrói e reconstrói conhecimentos, mas principalmente onde nos formamos e formamo-nos de novo como pessoas, como sujeitos capazes de pensar, de sentir, de fazer, de transformar. E, como tal, não se pode reduzir o ensino a um simples tratamento de conteúdos, pois este leva a cabo todo um rico e completo processo onde se produzem as condições para que possamos aprender criticamente. Freire diz: “Essas condições implicam ou exigem a presença de educadores e de educandos criadores, instigadores, inquietos, rigorosamente curiosos, humildes e persistentes... os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução ao lado do educador, igualmente sujeito do processo” [5]

Gerar condições para a aprendizagem crítica pressupõe um papel integral de compromisso por parte do educador ou da educadora com todo o processo de construção de capacidades, pelo que exige a disposiçao de asumir o risco de partilhar pesquisas e perguntas e não só afirmações ou negações; reconhecer que não se tem todas as respostas e estimular o sentido crítico de pesquisa, de preocupação, de não conformismo: “O educador democrático não pode negar-se ao dever de, na sua prática docente, reforçar as capacidades críticas do educando, sua curiosidade, sua insubmissão” (idem).

É por isso que o papel de um professor democrático é considerado mais como sendo o papel de um desafiador e não o papel de um “facilitador”.[6] Esta noção, muito em voga na América Latina, talvez tenha a sua origem na procura de uma alternativa para combater a forte imagem do papel do docente, tendo como intuito fazer sobressair esse papel como animador de um grupo. Mas ao fazê-lo tem tendência em reforçar o lado oposto: professores ou professoras que não põem em jogo os seus próprios planeamentos ou posições, que se encontram fora do grupo e dos seus compromissos, pois dedicam-se exclusivamente a “facilitar” o processo ou, pior ainda, que se encontram sobre o grupo, já dominam o tema e a sua complexidade e por isso dedicam-se simplesmente a que este seja “facilmente” assimilado pelo grupo.

Ao pensar como se fossemos “desafiadores” ou “desafiadoras”, colocamo-nos no papel de actores e actrizes do processo, ou seja, somos sujeitos activos e comprometidos com as pessoas com quem trabalhamos, com o contexto de cada uma, com os seus dilemas, com as suas opções e possíveis alternativas. Por isso, talvez o nosso primeiro “desafio” venha do grupo. São estas pessoas que nos desafiam com as suas perguntas, os seus interesses (ou desinteresse), os seus conhecimentos, as suas afirmações ou contestações sobre os conteúdos que têm de ser trabalhados; a percepção que têm de nós referente ao nosso papel, às nossas capacidades e comportamentos; as suas expectativas, palavras ou silêncios… a simples presença destas pessoas num espaço educativo constitui por si só um desafio para todos nós.

Sentirmo-nos desafiados/as pelo grupo de estudantes com quem trabalhamos, é, talvez, a primeira atitude democrática que podemos utilizar para conceber condições e disposições de aprendizagem para, como diz Freire: “criar possibilidades” para a produção ou construção do conhecimento: saber que não se conhece, ao certo, tudo sobre dos conteúdos que devem ser tratados; saber que as pessoas do grupo também têm os seus conhecimentos, as suas dúvidas e as suas exigências; porém, ao mesmo tempo saber que podemos enfrentar este desafio porque nos preparámos da melhor forma possível: temos informações, critérios, ferramentas e procedimentos para abordar, com criatividade e crítica, o assunto que deve ser estudado. Resumidamente, é adoptarmos a posição de diálogo entre “professores/as e estudantes”.

A partir daqui já podemos desafiar o grupo com perguntas, propostas metodológicas e materiais de apoio. Isto para incorporar mais elementos de informação e novas perspectivas, questionando as suas afirmações ou contestações. Ou seja, gerando debates em torno das suas percepções, atraindo novos conteúdos a partir do nosso domínio do tema, contribuindo para a sintetização de ideias, conduzir um processo de reflexão progressivamente mais complexo ou profundo…incentivar a capacidade crítica, a busca, a investigação e a construção de aprendizagens individuais e colectivas das quais também nós beneficiamos. Assim, cada desafio que apresentamos irá gerar uma nova resposta que se converterá novamente numa espiral lógica, num novo desafio para nós todos, professores e professoras, desafiadores e desafiadoras. Em conclusão: converter-nos em “aprendizes”.

Nas suas obras, Paulo Freire está constantemente a fazer referência a esta relação não-dicotómica entre professor/a e estudante que vai para além de uma simples visão da horizontalidade e o diálogo que deve existir entre ambos (e que levou a extremos tal como pensar que não existe diferença entre professor/a e estudante, ao que Freire respondia que se assim fosse, não se poderiam reconhecer entre si). Freire vai mais além das aparências, apresentando uma unidade dialéctica entre o ensino e a aprendizagem, entre professor e estudante que sintetiza na seguinte frase: “Quem ensina, aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” e vai ainda mais longe inter-relacionando as funções de sujeitos activos que correspondem a ambos neste processo: “é preciso que…desde do início do processo vá ficando cada vez mais explícito que, embora diferentes entre si, quem forma, forma-se e volta a formar-se ao formar e quem é formado, forma-se e forma ao ser formado”.[7]

Parece-me importante aprofundar, nestas frases fundamentais que poderiam converter-se num “slogan” facilmente repetitivo mas dificilmente compreensível e aplicável no seu todo, que faríamos precisamente o contrário do que aquilo que Freire nos propunha quando dizia: “não quero que façam aquilo que fiz; quero que me reinventem!”. Como tal, parece-me importante:

  1. Estar atento a quem ensina e a quem aprende, como duas dimensões presentes num processo permanente, tanto aos professores/as como aos estudantes, conhecidos como desafiadores e desafiadoras no caminho da construção e produção de conhecimentos.
  2. Aceitar esta visão como um desafio em busca de coerência ético-política e pedagógica com a qual pretendemos crescer como seres humanos mesmo que estejamos noutro paradigma da construção de saber que está oposto ao paradigma autoritário, vertical e reprodutivo dominante. A postura pedagógica que se expressa nesta perspectiva do mútuo desafio apoia-se numa profunda convicção ético-política que vem também de Freire: que como seres humanos somos seres históricos e que a história ainda não está concluída, e que podemos considerar isto como um “período de possibilidades”, convertendo-nos em sujeitos transformadores dessa história, em construtores do futuro que queremos, e não simplesmente em objectos da história que os outros decidiram. Portanto, a coerência que pretendemos pôr em prática como desafiadores/desafiados no impulso de processos que gerem condições e disposições de aprendizagem, requer uma rigorosidade metodológica que jamais poderá ser uma fórmula, um esquema, um modelo ou um conjunto de técnicas que se aplicam, mas sim uma forma de expressão de uma rigorosidade ética: “Não nos podemos assumir como sujeitos de procura, de decisão, de ruptura, de opção ou como sujeitos históricos, transformadores se não nos assumirmos primeiro como sujeitos éticos[8]
  3. Reaver dialecticamente o sentido, tanto directivo como democrático, com o qual Freire assegura, com o mesmo ânimo, a responsabilidade para ensinar e para aprender:

    “Eu estou absolutamente convencido de que não existe nenhuma razão para um professor ter vergonha de ser professor ou educador e inventar outros nomes, como nos Estados Unidos da América e dizer: “sou facilitador”. Eu sou um professor e não tenho motivos para esconder isso. Agora, o que eu não quero, nem na minha experiência, nem na minha mente, é ser um professor que se considere exclusivamente educador do estudante. O que eu quero, na minha experiência é que o estudante que trabalhe comigo assuma também o papel de meu professor. O estudante com quem trabalho é estudante num momento e professor no outro. Eu sou o seu professor e o seu estudante e nisso não existe nenhuma contradição inconcebível. Quero dizer: é uma ruptura com o autoritarismo, o que eu aconselho e vivo e que não aconselho unicamente…”[9]

  4. Reconhecer que o processo de câmbio de paradigma suponha, muitas vezes, ter em conta a carga que exerce a ideologia dominante nos actores dos processos educativos e que portanto, para fazer com que esta nova perspectiva pareça realidade há que gerar também “desafios” progressivos que nos vão demonstrando a viabilidade através de outra forma de agir. Assim, existe uma interessante resposta de Freire a uma pergunta que lhe fizeram na Índia sobre como enfrentar a situação em que os estudantes estão passivamente à espera que o professor lhes ensine querendo este fazer algo diferente:

    “Existem circunstâncias em que, quando o professor convida os estudantes a optarem por uma abordagem diferente, eles sentem-se inseguros e necessitam de segurança. No momento em que o professor diz: “Eu não estou aqui apenas para vos ensinar mas também para aprender”, os estudantes não estão preparados e sentem-se fragilizados. Mesmo aqueles que têm uma boa experiência política sentem isso logo de início. Eles precisam de um PROFESSOR…aquilo que eu sugeria era que quando começássemos a trabalhar com um novo grupo e que nos déssemos conta que este está sempre à espera de muito mais, começarmos a cinquenta porcento como professores e os outros cinquenta porcento como estudantes para, durante o processo, morrer como professores exclusivos e renascer novamente como professores-estudantes e evitar que os estudantes também morram como estudantes exclusivos para renascer como estudantes-professores. Naqueles seminários em que eu digo “Mesmo que eu seja professor sou também um estudante” eles não me conseguem compreender”[10]

Por tudo isso, é mais importante reconhecermo-nos como “aprendizes” permanentes, porque no trabalho educativo somos nós, os educadores ou as educadoras, que estamos em permanente processo de aprendizagem, mas muitas vezes não conseguimos reconhecer as ditas aprendizagens, torná-las explícitas, reflecti-las criticamente e estas vão ficando esquecidas pelo caminho, porque caímos no activismo e perdemos a possibilidade de parar por um momento para reunir, recolher e reflectir sobre todas essas formas de ensino, as quais, portanto, muitas vezes se perdem não só para nós, como também não as podemos compartilhar com outras pessoas.

Voltando directamente ao livro de Freire que nos convoca, retomamos esta exigência: “Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática”[11] como um momento fundamental do processo de formação permanente de educadores e educadoras.

No V Colóquio Internacional Paulo Freire, realizado no ano de 2006 em Recife, a Dr.ª Ana Lúcia Souza de Freitas apresentou um excelente trabalho, que reúne de forma muito clara as contribuições de Freire, desde uma perspectiva do “inédito-viável” às relações existentes entre ensinar-aprender e investigar como factores que contribuem para fortalecer o potencial emancipador dos processos educativos.[12] Neste trabalho a Dr.ª Ana assinala a importância que Freire dá ao registo e reflexão das nossas experiências:

“Freire propõe que criemos o hábito de registrar a prática e a reflexão sobre a prática a partir do que ele mesmo vivenciou na sua relação com a escrita, expressão de seu compromisso com a teorização a partir das experiências cotidianas. A leitura de sua obra permite perceber as relações exercidas entre a experiência da reflexão a partir da prática e o ato de registrar esta reflexão – de modo sistemático e sistematizado – enquanto importante contribuição para o desenvolvimento da cultura da pesquisa associada à prática educativa.

De modo especial, na obra Pedagogia da Esperança, Paulo Freire relata o processo de reflexão e escrita que deu origem à obra Pedagogia do Oprimido. Revela com detalhes o modo como escreveu, em quinze dias, os três primeiros capítulos (...) segundo ele, escrever sobre o vivido é uma forma de organizar as aprendizagens gestadas na prática e na reflexão crítica e sistemática sobre ela”.

Por isso, mesmo que Paulo Freire nunca tenha utilizado o termo “sistematização de experiências”, reconhecemos que o núcleo percursor das propostas, que na América Latina têm sido trabalhadas em torno desta conceptualização, está inspirado nos desafios e exigências de aprendizagem da prática que Freire nos apresentou.[13]

A palavra sistematização, utilizada em diversas disciplinas, refere-se principalmente à classificação, ordenação ou catalogação de dados e informações, do que a “colocá-los no sistema”. A noção mais comum e difundida deste termo é esta. No entanto, na área da educação popular e de trabalho em processos sociais, utilizamo-lo num sentido mais amplo, referente não só a dados ou informações que se reunem e ordenam, mas também para obter apredizagens críticas das nossas experiências. Por isso, não dizemos só “sistematização”, mas também “sistematização de experiências”.[14]

Porque percebemos que as experiências são processos históricos e sociais dinâmicos: estão em constante movimento e mudança. As experiências são processos complexos: intervêm numa série de factores objectivos e subjectivos que estão interligados: condições do contexto, acções dos diferentes actores e as relações que são criadas, as percepções, interpretações, intuições e emoções das pessoas intervenientes, as suas diferentes relações, etc.

As experiências são processos vitais e únicos: expressam uma enorme riqueza acumulada de elementos e, portanto, são inéditos e irrepetíveis. Por tudo o que já foi mencionado, é que é tão apaixonante, como exigente, a tarefa de tentar percebê-las, extrair as suas aprendizagens e comunicá-las. Tentamos apropriar-nos criticamente das experiências vividas e damos conta delas, compartilhando com outras pessoas o que foi aprendido. Isto implica registar os acontecimentos e posteriormente ordenar e reconstruir o processo vivido, para poder realizar uma interpretação crítica dele, extrair aprendizagens e partilhá-las.

Algumas características da sistematização são as que:

  • Produzem conhecimentos desde a experiência, mas que tentam transcendê-la.
  • Recuperam o sucedido, reconstruindo-o historicamente, mas para interpretá-lo e obter aprendizagens.
  • Valorizam os saberes das pessoas que são sujeitos das experiências.
  • Identificam as principais mudanças que se deram ao longo do processo e porque é que se deram.
  • Produzem conhecimentos e aprendizagens significativos desde a particularidade das experiências, apropriando-se do seu sentido.
  • Constroem um olhar crítico sobre o que foi vivido, permitindo orientar futuramente as experiências com uma perspectiva transformadora.
  • Complementa-se com a avaliação, que normalmente se concentra em medir e valorizar os resultados, contribuindo com uma interpretação crítica do processo que possibilitou os ditos resultados.
  • Complementa-se com a investigação, a qual está aberta ao conhecimento de muitas realidades e aspectos diferentes, contribuindo com conhecimentos vinculados às próprias experiências individuais.
  • Não se reduz a narrar acontecimentos, descrever processos, escrever uma memória, classificar tipos de experiências e ordenar os dados. Tudo isso é somente uma base para realizar uma interpretação crítica.
  • Os principais protagonistas da sistematização devem ser os mesmos das experiências, mesmo que para realizá-la possam requerer apoio ou assistência de outras pessoas.

Nos últimos anos tive o privilégio de trabalhar esta proposta com diversos grupos e organizações de educadores e educadoras da América Latina, tanto no âmbito formal como no informal. O campo de possibilidades metodológicas, que a sistematização de experiências possui como factor da nossa própria formação, foi-se ampliando e enriquecendo, desde as nossas práticas e em função de problematizá-las e enriquecê-las com novas perspectivas.[15]

No entanto, a base ético-política e pedagógica que a sustenta é a mesma que temos vindo a referir desde o início desde artigo: a convicção de que as nossas práticas e, em particular, as nossas experiências directas, como educadores ou educadoras, são uma riquíssima fonte de aprendizagens e são parte integrante de uma prática social e histórica desde a altura em que podemos produzir conhecimentos que nos permitam a sua transformação, na medida em que possamos construir as condições e as disposições para que se possam produzir as ditas aprendizagens.

Espero que estas reflexões ajudem a incentivar uma “curiosidade epistemológica” freiriana por assumir nas nossas práticas uma função desafiadora e uma sistematização constante das nossas experiências educativas, convencidos de que “o acto de ensinar é um momento fundamental de aprender”, já que “não existe docência sem discência”.


[1] 1 Um capítulo do livro Pedagogia da autonomia – Saberes necessários à prática Educativa, Paz e Terra, SP, 1997. João Francisco de Souza, amigo intimo e companheiro, educador popular, investigador e catedrático da Universidade Federal de Pernambuco em Recife, amigo e “reinventor” de Paulo Freire, falecido a 27 de Março de 2008. Foi ele quem me incentivou a reler este pequeno, mas fundamental, texto de Freire e me levou a repensar na minha prática e nas minhas ideias a partir das suas convicções, inspirações e atitudes profundamente humanas. Ele, assim como Carlos Núñez, falecido um mês depois, acompanha permanentemente a minha tarefa e as minhas pesquisas.

[2] Educador popular e sociólogo. Director do Centro de Estudos e Publicações Alforja, Costa Rica. Coordenador do Programa latino-americano de Sistematização de Experiências do CEAAL www.alforja.or.cr Esta dirección de correo electrónico está siendo protegida contra los robots de spam. Necesita tener JavaScript habilitado para poder verlo.

[3] No sentido de “raiz”, fundamento, alimento e sustento da sua proposta.

[4] Já no capítulo 1 do livro mencionado, o próprio Freire utiliza o exemplo da cozinha como processo de construção de conhecimentos a partir da prática e da construção, assim como, da pessoa que cozinha: “o ato de cozinhar, por exemplo, pressupõe alguns conhecimentos em relação ao uso do fogão, como ligá-lo, como aumentar ou diminuir a chama, como lidar com certos riscos, mesmo que remotos, de incêndio, como combinar os diferentes temperos numa síntese saborosa e atraente. A prática de cozinhar vai preparando o inexperiente, ratificando alguns daqueles conhecimentos, ratificando outros, e vai possibilitar que ele se torne cozinheiro” (pp. 22.23)

[5] Ob. Cit. P. 29

[6] Já há vários anos, o próprio Freire tinha ligado a sua crítica à ideia do “facilitador” tão comum e usada no Norte da América. Ver: Torres, Rosa Maria: Educação Popular: um encontro com Paulo Freire, Tarea, Lima, 1998.p.88.

[7] Freire, 1996, ob. cit. P. 25.

[8] Ob. Cit, p. 19.

[9] Freire, Paulo e S. Guimarães: Sobre Educação (Diálogos) Vol 1. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 3ª. Ed. 1984 pp. 118-119, citado por Torres, Rosa María: Educação Popular, um encontro com Paulo Freire, Tarea, Lima, 1988, p.88.

[10] “To know and to be: a dialogue with Paulo Freire”, entrevista realizada na Índia, 1979, en Indian of Youth Affairs, no. 2, Nueva Delhi, Junho de 1979, pp.1-4. Citado por Torres, Rosa María, Ob. Cit: p 107.

[11] Ob. Cit. P. 42.

[12] O trabalho tem como título: “Pedagogia do inédito-viável: contribuições de Paulo Freire para fortalecer o potencial emancipatório das relações ensinar-aprender-pesquisar”. Biblioteca virtual do Centro Paulo Freire- Estudos e Pesquisas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil

[13] Ver, a respeito da crescente biblioteca virtual, sobre o que está a ser reunido acerca deste tema por parte do Programa Latino-americano de Apoio à Sistematização de Experiências do CEAAL (Conselho de Educação de Adultos da América Latina): www.alforja.or.cr/sistem/biblio.html

[14] Tomámos aqui como referência elementos que apresentámos noutros textos sobre o tema, em particular: “Para Sistematizar Experiências”, Ed. Alforja, 1998; Edição actualizada em Português: Ministério do Meio Ambiente, PPG7, Programa de Monitorização e Avaliação, Brasília, 2006.

[15] Por exemplo, desde o ano de 2006 que, em Cuba, foi constituído um mestrado em Ciências da Educação dirigido ao corpo docente de toda a ilha, que tem como um dos seus propósitos incentivar a sistematização das experiências como factor essencial na formação do referido corpo e ser uma fonte de renovação e recriação dos projectos educativos no terreno.


Traductores: Sofia Lourenço, Sophie Bento e Paulo Silva
Revisora: Mariana Santos


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