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vol 23 • 2017

A atualidade de Freire: educação, política e cidadania

A atualidade de Freire: educação, política e cidadania

Ana Mara Araújo Freire [1]; nita freire [2]

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Quando Pep Aparício me alou, o ano passado, de sua ideia de fazer um tributo a PAULO FREIRE pelos 20 anos de seu Passamento, fui tomada de muita alegria, mas também de uma certa nostalgia, de um sentimento de saudades da vida com ele, que está sempre presente em mim. Recordei-me das visitas diversas à Espanha, sempre a trabalho, mas regadas pelos espetáculos de danças e sapateado; de comidas típicas inigualáveis, que só em vê-las nossos olhos se fixavam na variedade de seus componentes exuberantemente coloridas expondo seus aromas aos nossos desejos da gula. Recordei o que nos prendia, a mim e a Paulo, àquelas terras, sua gente que ainda nos oferecia os azeites e os vinhos; as indumentárias das mulheres adornadas de mantilhas e pentes em desfiles de tal beleza que poderiam ser comparadas aos requintes das artes dos seus palácios, monumentos e museus. Em qualquer da parte da Espanha víamos reluzir belezas e ouvíamos sons belamente sensuais.

E foi, neste exato momento em que me falava Pep, dos temas a abordar através de uma publicação eletrônica de nome “Rizoma freireano” em tributo a Paulo que fui tomada por um certo sentimento de pertencimento a Valência (ao “valencianista”?). E a outros lugares em que se divide as cuatro culturas, que se unem , formando o que conhecemos como a ESPANHA; mas que têm rompida a unidade, sobretudo, porque cada uma delas fala e escreve uma língua própria, diferente uma da outra.

Revivi, com alegria muitas viagens com Paulo e depois sozinha, quando numa dessas vezes peregrinei com Pep, em abril de 2003, por Valencia, Palma de Maiorca, Huelva, Sevilha, Madrid [3] para os lançamentos de alguns livros de Paulo que tinham sido traduzidos para o valenciano, por iniciativa do CREC/Pep Aparicio e seus colegas. L’educació a la ciutat. Xátiva : Edicions del Crec i Denes Editorial, 2003; Pedagogia de l`autonomia. Xátiva : Edicions del Crec i Denes Editorial, 2003; com Myles Horton. Caminant fem el camí. Xátiva : Ediciones Del CREC, 2003, e, posteriormente, Pedagogia de l’esperança, Note de Ana Maria Araújo Freire. Xátiva : Edicions del Crec i Denes Editorial, 2004.

Voltando à pauta em questão devo me deter na proposta de Pep, iniciando-a e terminando-a, com reflexão crítica, “navegando” dentro das características, das especificidades do que nos diz este ato da essência, do significado profundo, radical e completo do que acolhe, na intimidade, a palavra RIZOMA. Esta não é uma tarefa fácil, mas a essência da palavra RIZOMA, nos oferece uma reflexão generosa, para entender a teoria de Paulo, por isso mesmo imensamente gratificante. Assim, RIZOMA n.23, neste caso, não é apenas o tema-título do meu e dos outros trabalhos aglutinado em torno das ideias de Paulo. É também o fundamento da metodologia, que, vai direcionar o meu trabalho fundamentalmente freireano.

É interessante constatar que mesmo fazendo parte dos dicionários da língua portuguesa, a palavra RIZOMA, não é de uso comum entre nós brasileiros/as. Ao contrário, nas terras de domínio espanhol, nas terras de Cervantes, de Calderón de la Barca ou de Federico Garcia Lorca, e de muitos outros gênios espanhóis, em qualquer de suas cuatro partes se gosta e muito se usa, a palavra RIZOMA.

Mas o que significa RIZOMA?

Na língua espanhola significa: “bot. rizoma, talo horizontal e subterrâneo, como um lírio comum” (Dicionário de Espanhol-Português, de Julio Martinez Almoyna, Porto: Porto Editora Ltda, 1977).

O dicionário da língua portuguesa, contém um pouco mais de informações sobre RIZOMA: (1) tirado da botânica, como o fez o dicionário de espanhol, “caule subterrâneo e rico em reservas, comum em plantas vivazes, caracterizado pela presença de escamas e gemas, capazes de emitir ramos foliferos, floríferos e raízes; e, por metáfora, (2) “a base sólida que legitima ou autoriza alguma coisa; fundamento, raiz” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Objetiva: Rio de Janeiro, 2009, p. 1672).

Assim, podemos entender esta publicação, em homenagem a Paulo Freire, como sendo o de ensaios de diferentes matizes, mas todos com características e raízes nos fundamentos que legitima (reizoma) a teoria político-ético-antropológico-epistemológica do educador Patrono da Educação Brasileira.

Em última instância, o que Pep nos desafia a fazer é concentrarmo-nos na relação do significado mais profundo de RIZOMA X a concretude nos dias de hoje da educação política e formação da cidadania --- “A atualidade de Freire: educação, política e cidadania” .

Fiquei pensando na tarefa solicitada, difícil, aliás, mas, que, entretanto, é necessária de ser refletida no mundo que se digladia por intolerância e violências nunca antes conhecida na história da humanidade. [4]

Como faria eu um escrito sobre o pensamento de meu marido PAULO FREIRE à altura dele, um dos maiores pensadores dos séculos XX e XXI, tendo que resgatar seu pensamento à luz dos dias atuais nos âmbitos da educação política, política como poder e cidadania, percebendo-o como contido e ao mesmo tempo contendo-o, na relação ao chamamento que a palavra chave Rizoma, nos faz? --- tendo em mente que os livros de Paulo foram escritos até 1997, quando faleceu, e, a 50 anos, quando publicou seus primeiros livros ainda vivendo no Chile.

Assim, podemos entender esta publicação, em homenagem a Paulo Freire, como uma busca de um caule subterrâneo cheio de vida, de flor que se abre exalando seu cheiro, rico em reservas capazes de proliferarem-se em outro ramos e raízes. Ou dito de outra forma, buscar “uma base sólida que legitima ou autoriza alguma coisa; fundamento, raiz”.

Isto é, vamos encontrar no caule rico cheio de vida a base solida que legitima, autoriza hipóteses, intui o obvio, advinha o não dito, autoriza as contradições, denuncia para anunciar; encontra a verdade no processo prática-teoria-prática; proclama o hoje tendo um pé no passado e a mão no futuro.

A teoria do conhecimento de Paulo advém da sua experiência prática vivida e pensada, vivida desde a sua adolescência; da realidade visível ou não, observada, constatada, falada e escrita, ou dos sonhos e das utopias interpretadas como eventos que têm veracidade na consciência humana e a sociedade, portanto, necessita ser conhecida. Da comparação entre o dito como Verdade, da rigorosamente na aplicação das metodologias, que lhe dão validade; do exemplo e do diálogo que partindo do Eu, ao fazer do Outro, outro EU, rompem o dissenso e alcançam a compreensão da possibilidade de encontrem o consenso, ou não. Num movimento que não tem fim, isto é, o consenso não é definitivo, certo, acabado, a nirvana. Nem o dissenso tampouco. Esse movimento dialético é vida e gera a vida. É o “caule subterrâneo e rico em reservas, comum em plantas vivazes, caracterizado pela presença de escamas e gemas, capazes de emitir ramos foliferos, floríferos e raízes” que constituem a essência do RIZOMA --- e a essência da obra de Paulo Freire. É o caule que meio século depois de nascido (as obras de Paulo) continua germinando, reproduzindo-se rico e sem reservas, trazendo cheiros e flores.

Paulo criou conceitos para explicitar a sua teoria do conhecimento ou como ele gostava de dizer “uma certa compreensão ética, antropológica, política, ética, estética e interdisciplinar do ato de educar”, da educação, antagônica de tudo que se praticava até então nas escolas: a educação bancária e suas ramificações. Esta, baseada no repetir, no decorar, no não pensar, “no punir e vigiar”, no inibir a criatividade e a curiosidade espontânea ou epistemológica. Enfim, uma educação que tem seu valor central em avaliar apenas para castigar e reprovar. É a educação, que, quase sempre, inibe corpos, almas e mentes.

No pensamento freireano é a inconclusão dos seres humanos que justifica o ato educativo. Se fôssemos seres prontos, concluídos não haveria razão para a educação. E é esse inacabamento que é o responsável pelo Rizoma exalar a possibilidade do novo, da boniteza da obra de Paulo.

Creio que alguns conceitos explicitam com precisão o que Paulo pensava sobre o ato de educar. Por ex : conscientizar cada um, cada uma, para se tornarem sujeitos também da história e não apenas objeto, assim homens e mulheres que pudessem e possam construir e usufruir dos direitos humanos e transformar sua sociedade. O educar sendo ato individual (ninguém, pode aprender no lugar de ninguém), o aprender e o saber só podem ser entendidos como Verdade se forem, contraditoriamente, um ato coletivo, como um ato que nutre a dimensão coletiva.

Considero extraordinariamente sábia uma das percepções, que se tornou uma das máximas de Paulo Freire: “Eu não conheço com minha cabeça, eu conheço com ela a partir das manifestações corpóreas que, previamente, me alertam: “Paulo, incida as suas reflexões sobre isto que lhe deixou de pelos irisados, sobre o que fez seu coração bater aceleradamente, sobre aqueloutro fenômeno ou evento, que lhe deixou rubro e suando demasiadamente”. Assim, incidir sua razão, junto com suas emoções e seus sentimentos sobre qualquer objeto ou fenômeno que lhe despertou a curiosidade ingênua e se quer conhecer, tudo que inquieta a existência humana para com a razão, através da curiosidade epistemológica alcançar a educação libertadora, problematizadora, conscientizadora, que por sua vez, influencia na ordenação de uma nova ordem social, uma Nova Sociedade. Esta “adivinhação” de Paulo exala o cheiro do lírio que sobrevive no claustro do fundo da terra.

Paulo insistia numa escola alegre (por mais difícil que seja a tarefa que se busque/encontre no ato de conhecer a sua pulsão que nos leva à alegria); popular (aquela que não sendo elitista também não é simplista); intuitiva (aquela que valoriza a intuição, o senso comum para alcançar a razão crítica dos fatos e do mundo); valorizando a disciplina (aquela que abre a porta para o comportamento voltado para dentro de si mesmo, podendo assim, muito provavelmente, apreender os conteúdos, aprendendo-os, memorizando-os, utilizando-os com critérios científicos, morais, religiosos, míticos etc. em comunhão com os outros/as). Na interdisciplinaridade (aquela escola que não perde a dimensão de que cada ser é uma totalidade que nela (a escola) vai aprender para alcançar a sua subjetividade autenticamente crítica, no ato de conhecer objetivamente (qualidade própria da escolha das escolas) e ao mesmo tempo conjugando o diverso com o singular, embrenhando o ato de conhecer as ciências, tecendo uma rede de saber sem fim, do conhecimento como uma Verdade para o bem social); na formação docente permanente , (escola na qual se aprende o que se vai ensinar e, posteriormente, se aperfeiçoar num projeto de formação permanente, que privilegia, ao analisar, à luz da teoria, a prática praticada ao ensinar. A formação docente permanente, chamo atenção, não é ler uma vasta bibliografia e escutar palestras de especialistas famosos. Paulo acreditava na escola que estimulasse a curiosidade ingênua desde a infância, provocando que a criança crescesse com vitalidade e rigor, transformando sua ingenuidade em curiosidade epistemológica, quando seria capaz de fazer escolhas cientificas ou religiosas, optar pelo caminho político-ideológico da sua vida “[n]uma base sólida que legitima ou autoriza alguma coisa; fundamento, raiz”.

Isto é, vamos encontrar no caule rico cheio de vida a base solida que legitima, autoriza hipóteses, intui o que vai percorrer em sua vida. Essa escola encontra a base sólida que legitima ou autoriza o homem e a mulher a buscarem os fundamentos culturais, educativos, políticos, éticos para fazerem-se seres humanos autênticos.

O Dissenso-consenso; a teoria-prática; o ensino-aprendizagem; o professor-estudante; o autoritarismo-autoridade; a liberdade-licenciosidade, etc. são pares dialéticos, que fomentam a dialogicidade no ato de educar. Que buscam suas raízes, nas raízes, no húmus nos quais se encontram a origem do conhecimento freireano que aponta, sem reservas, com ousadia e sem medo para o que se pode aprender ou (re) aprender sobre a utopia e o saber, já conhecida e compreendido.

Alinhavei alguns pressupostos pedagógicos freireanos, entre estes, enfatizo, a importância das emoções, dos sentimentos, da afetividade, da valorização dos valores éticos e da tolerância e das respostas com sensibilidade, da necessidade da capacidade de raciocínio lógico, qualidades pedagógicas que representam a amorosidade pela educação. Paulo concebeu e fundamentou a amorosidade no comportamento do professor/a como aquele/a, que trata com cortesia e amor sensível a todos os seus alunos/; no professor/a tem amor pelo ato de ensinar com eficiência; e amor pelo conteúdo que ensina com responsabilidade.

Estes pressupostos da teoria freireana estão fincados no tronco molhados da política e da ética, no “caule subterrâneo e rico em reservas, comum em plantas vivazes, caracterizado pela presença de escamas e gemas, capazes de emitir ramos foliferos, floríferos e raízes; e, por metáfora, “a base sólida que legitima ou autoriza alguma coisa; fundamento, raiz”, a concretude nos dias de hoje da educação política e formação da cidadania --- “A atualidade de Freire: educação, política e cidadania” . Tenho este exemplo, entre muitos outros, que publiquei na biografia de Paulo, sobre a influência, a repercussão e a atualidade da obra de Paulo Freire, informando fatos da mais alta importância, que provam minha afirmação. Duas pesquisas internacionais realizadas em 2016, que comprovam, que, o pensamento do Patrono da Educação Brasileira, continua quase 50 anos depois da publicação/socialização de sua obra Pedagogia do Oprimido, como modelo e fonte para endossar e referendar estudos e trabalhos na área das ciências humanas.

A Open Syllabus pesquisou em mais de um milhão de programas de estudos de universidades, em países de língua inglesa, Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia e descobriu que Pedagogia do Oprimidoé o 99º livro mais citado, e que Paulo Freire é o único brasileiro entre os 100 mais citados e mais solicitados para leitura dos estudantes pelas universidades dos Estados Unidos. E também que Pedagogia do Oprimidoé o segundo livro melhor colocado no campo da educação, perdendo apenas para Teaching for Quality Learning in University : What the Student Does, de John Biggs . O projeto reúne mais de 1 milhão de ementas de estudos universitários americanos, ingleses, australianos e neozelandeses de disciplinas de instituições de ensino superior em todos esses países e verifica, repito, quais são os livros mais solicitados pelos professores/as para estudo e pesquisa dos estudantes.

O Open Syllabus, informa ainda, que, o livro Pedagogia do oprimidoé requisitado em 1.021 ementas de universidades e faculdades dos EUA. Não é pouca coisa: fica à frente de clássicos como Rei Lear, de Shakespeare; Moby Dick, de Herman Melville; e O Banquete, de Platão.

Outra pesquisa realizada pelo professor associado Elliott Green, da London School of Economics analisou as obras mais citadas na língua inglesa, trabalhos disponíveis na Google Scholar (ferramenta de pesquisa dedicada à literatura acadêmica, criada em 2004, que é desde então uma referência crescente para pesquisas) e constatou que Pedagogia do Oprimidoé o terceiro livro mais citado mundialmente na área das Ciências Sociais.

Segundo ele, Paulo Freire é citado 72.359 vezes, atrás apenas do filósofo americano Thomas Kuhn (81.311) e do sociólogo, também americano, Everett Rogers (72.780). Ele é mais referido do que pensadores como Michel Foucault (60.700) e Karl Marx (40.237).

Enfim, em 2016, duas pesquisas demonstram o impacto da obra de Paulo Freire, a nível mundial, o consagrando como um dos maiores e mais importantes pensadores do mundo atual.

Não há como duvidar, que, a Pedagogia do Oprimido é uma referência constante em estudos na área das ciências humanas, desde o seu lançamento na língua inglesa, nos EEUU, em 1970 e no Brasil, em 1974. Livro-base, fundamental para a compreensão de seu pensamento progressista, que contém os princípios básicos de toda a sua obra pedagógica, de sua teoria ético-político-antropológico-libertadora, que abarca o estudo do que viria a ser atual muitos anos depois, até hoje.

A visão de totalidade e de uma (certa) certeza da interdisciplinaridade do conhecimento do ser humano, sua história, cultura e saber, permitiu por sua genialidade que pudéssemos afirmar sua atualidade, saber e presença no mundo, mesmo que, fisicamente, 20 anos sem ele.


Fontes:

http://www.hypeness.com.br/2016/06/paulo-freire-e-terceiro-teorico-mais-citado-em-trabalhos-academicos-no-mundo/

https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/06/04/Paulo-Freire-%C3%A9-o-terceiro-pensador-mais-citado-em-trabalhos-pelo-mundo .


[1] Doutora em Educação, pela UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SP.

Viúva e responsevel por parte da obra de Paulo Freire

[2] Esse apelido, que no Brasil significa, o nome caseiro e amoroso dado às crianças, o tenho desde a mais tenra idade.

[3] Aproveitei e fui sosinha conhecer a Santiago de Compostela, Ávila, Segóvia, aumentando o meu conhecimento por este fascinante país.

[4] Neste exato momento ouço a noticia de um atirador, em Las Vegas, que matou 59 pessoas e feriu mais de 500, sem nenhum motivo conhecido, em 2 de outubro de 2017.


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