Sem educação crítica não há movimentos sociais. Quatro perspectivas sobre uma relação complexa
- Mariateresa Muraca
- n. 25 • 2018 • Instituto Paulo Freire de España
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Sem educação crítica não há movimentos sociais. Quatro perspectivas sobre uma relação complexa[1]
Mariateresa Muraca, Università di Verona
Introdução
Diante da persistência de profundas desigualdades e insuportáveis injustiças em vários âmbitos da existência e em nível global, os movimentos sociais encarnam uma esperança frágil e obstinada, a partir de um posicionamento muitas vezes marginal e ocultado. Eles podem ser considerados como profetas de possibilidades utópicas de futuro, porque adiantam no plano do possível horizontes que parecem negados pelas condições vigentes (Contini, 2009). Na atual conjuntura, os movimentos sociais se deparam com numerosos desafios: primeiramente se situam num cenário caracterizado por uma significativa regressão democrática e pela monopolização da discussão e das decisões sobre problemas vitais por parte de especialistas [2](Morin, 2005). Outro urgente desafio é representando pelo crescimento e a difusão em toda Europa de organizações populistas e agregados de extrema direita, que, como os movimentos sociais, reivindicam raízes populares, surgem da instabilidade social e se alimentam do desejo de mudança. Assim existe uma proximidade muito problemática entre os movimentos sociais e outras formações, mesmo que elas sejam caracterizadas por modus operandi e objetivos muitas vezes opostos. No discurso político italiano, por exemplo, é frequente a criminalização de qualquer tentativa de repensar a práxis democrática corrente, com base numa confusão (intencionalmente) equivocada entre formações antidemocráticas e movimentos que lutam para uma democracia mais radical e participativa. A afirmação de oportunas distinções, portanto, parece uma tarefa teórica com relevantes consequências políticas. Neste sentido, um caminho muito fecundo a ser seguido é o de explicitar o laço constitutivo entre educação popular e movimentos sociais. Em termos gerais, pode se afirmar que sem educação crítica não há movimento social. Onde as emoções políticas são instrumentalizadas (Nussbaum, 2014) sem uma investigação profunda das razões de ser dos fatos sociais; onde a inquietude pela mudança social não se acompanha à inserção no mundo e à assunção de um compromisso com a história; onde o cumprimento de diretivas estabelecidas por outros impede o exercício pessoal do pensamento; onde não existe uma efetiva circularidade entre ação e reflexão, não pode se falar de movimentos sociais. Todavia a relação entre educação e movimentos sociais é muito complexa e precisamos articulá-la melhor para mostrar as peculiaridades dos movimentos sociais e sustentar suas práticas. O artigo tenta ofercer algumas respostas para esta questão, explorando o nexo entre movimentos sociais e educação crítica a partir de quatro, interdependentes perspectivas. Em particular, no decorrer das páginas, argumentarei que os movimentos sociais podem ser interpretados como contextos de aprendizagens; sujeitos educativos e agentes de transformação; laboratórios de decolonização dos saberes e espaços gerativos de teorias pedagógicas.
Movimentos sociais como contextos de aprendizagens
Como se caracterizam as práticas educativas dos movimentos sociais? Quais aprendizagens se adquirem através da participação? Quais são as peculiaridades e os limites dos processos educativos no interior dos movimentos sociais? Essas preguntas fundamentam a primeira leitura que quero propor e que apresenta os movimentos sociais como contextos de aprendizagens.
As práticas educativas dos movimentos sociais podem se realizar tanto no nível da educação formal, quanto no nível da educação informal ou não formal. De fato, existem movimentos que têm suas próprias escolas, que estão comprometidos com a elaboração de uma pedagogia específica – o caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é, neste sentido, emblemático – ou que lutam para garantir o acesso e a melhoria da instrução. Como Sara Motta e Ana Esteves (2014) evidenciam, todavia, nos movimentos sociais, os processos de desaprendizagem das lógicas dominantes e de aprendizagem de lógicas outras se desenrolam especialmente através de micro-práticas cotidianas, que podem incluir encontros, assembleias, momentos de socialização e narração de experiências, processos de assunção de decisões, organizações de campanhas, distribuição de tarefas, desenvolvimento de estratégias, etc. Tratam-se de espaços de compreensão crítica do mundo (Gryzbowski, 1987), momentos de autoanálise coletiva em que se aprende participando, semeando interrogações, potencializando formas de conflito não-violento, imaginando juntas/os e sozinhas/os molas propulsoras para as mudanças essenciais (Dolci, 1985). Também os processos educativos não formais exercem um papel central no interior dos movimentos sociais. Por exemplo, Gerard Lutte (2001) insiste muito na importância da amizade: à origem do engajamento político normalmente não há um processo intelectual; mais que isso, “é indispensável o impulso afetivo que surge do amor recíproco entre amigos e amigas” (p. 287; tradução minha).
Maria da Glória Gohn (2011) especifica algumas aprendizagens que se realizam dentro dos movimentos sociais: - aprendizagens práticas: aprender a se unir, organizar, participar; aprendizagens linguísticas: decifrar temas e problemas e construir uma linguagem comum que permita ler o mundo; aprendizagens simbólicas: reconhecer e reformular as heterorrepresentações e produzir representações e autorrepresentações; aprendizagens reflexivas: refletir sobre a própria prática, gerando saber; aprendizagens éticas: a partir da convivência com outros e outras, cultivar valores como a partilha, a solidariedade, a escuta recíproca; aprendizagens cognitivas e teóricas: aprender novos conteúdos, conceitos, categorias de análise que permitam compreender criticamente a própria realidade; aprendizagens político-técnicas: reconhecer seus interlocutores na cena pública e aprender a se relacionar com eles; aprendizagens culturais: construir uma identidade comum e valorizar as diferenças internas.
Os processos de aprendizagem que se cumprem dentro dos movimentos sociais, então, remetem a formas de pedagogização da política e politização da educação, questionando uma compreensão restrita e hegemônica de educação, que disjunge o saber da experiência, a elaboração teórica das lutas, a classe da comunidade, a mente do corpo, o sujeito consciente do objeto do conhecimento (Motta & Esteves, 2014). A educação que acontece nos movimentos, portanto, se manifesta através de uma dinâmica interativa, que envolve diversos espaços e múltiplos sujeitos de forma enraizada na participação em um tecido social mais amplo (ibidem).
Na Itália, duas das experiências historicamente mais relevantes neste sentido foram a escola de Barbiana e o centro educativo Mirto em Partinico, coordenadas respetivamente por dom Lorenzo Milani e Danilo Dolci. Nelas, os sujeitos educativos problematizavam a neutralidade da educação, que, assim, se tornava uma via para conhecer criticamente a realidade e transformá-la.
Chegando a este ponto, cada um atribui a culpa à fatalidade. É tão confortante ler a história em termos de fatalidade. Lê-la em chave política é mais inquietante: as modas tornam-se parte de um plano bem calculado para que Gianni seja cortado fora [da escola]. O professor apolítico se torna um dos 411.000 úteis idiotas que o padrão armou de diário de classe e boletim. Tropas de reserva encarregadas de parar 1.031.000 Gianni por ano.
(Scuola di Barbiana, 1967, pp.67-68; tradução minha)
Perguntávamos a cada pessoa, em cada família, para milhares de famílias fracas, por serem isoladas: “quer água cara ou barata?”. E lentamente se esclarecia como, para custar pouco, esta devia ser água democrática, não água de máfia: para quem tentava se organizar com os outros, a água cooperativa pouco a pouco se tornava mola propulsora para uma mudança também estrutural, nova força que dia após dia esvaziava o poder do velho grupo clientelista-mafioso local. Outros vales vizinhos se despertavam e outros diques nasciam. Mas como a nova renda teria desenvolvido os valores locais contendo e filtrando os modelos comerciais semeados pelos massmedia? Eram necessários outros estímulos para remover a situação mais em profundidade. Em dezenas e dezenas de encontros, onde participam especialmente mulheres e garotos, é identificada uma nova possível mola propulsora: um novo Centro educativo. Em outras dezenas de encontros se pede a meninos e meninas, garotos e garotas, jovens, assessores de todos os tipos, para conceber esse centro: até que isso começa a ganhar tamanho.
(Dolci, 1995, pp. 121-122; tradução minha)
A literatura científica destaca algumas características dos processos educativos que são gerados nos movimentos sociais:
- A superação das visões que dicotomizam a transformação do mundo e a transformação das pessoas ou que fazem depender mecanicamente a segunda da primeira ou a primeira da segunda. O compromisso para mudar a realidade, de fato, produz uma mudança pessoal, “Uma reestruturação da personalidade, do sistema de valores, das relações com os outros, da visão de mundo” (Lutte, 2001, p. 290; tradução minha). Por sua vez, a transformação de si está sempre relacionada à realidade e envolve o olhar e a ação sobre esta (Ferrando, 2011);
- A dialogicidade, elemento central da educação problematizadora conceitualizada por Paulo Freire. Para o pensador brasileiro, de fato, ninguém educa ninguém, nem a si mesmo/a, os homens e as mulheres se educam em comunhão com a mediação do mundo (Freire, 1987). Dolci (1985) também entende o processo educativo como um “recíproco e pluridirecional potenciar-se”, um “harmonizar-se para comunicar”, um “consciente participar ao criativo desenvolvimento do mundo”, “uma oficina maiêutica onde cada um possa ser parteira de cada um”;
- O reconhecimento e a valorização da assimetria, que, mais do que se contrapor à dialogicidade, constitui uma premissa fundamental para fazer emergir potencialidades, necessidades e desejos, e colocá-los em jogo na ação de transformação da realidade. O feminismo italiano da diferença refletiu muito sobre a disparidade nos relacionamentos entre mulheres e fez disso a sua base para a prática política da confiança que se expressa geralmente através de relações de amizade. “No relacionamento de confiança uma mulher oferece à sua semelhante a medida daquilo que ela pode e nela quer vir à existência” (Libreria delle donne di Milano, 1998, p.186; tradução minha). A confiança, então, se funda na aposta de um sentido livre da autoridade, no qual a identificação de uma mediação externa não subtrai nada de si; pelo contrário, torna possível grandes aspirações.
O equilíbrio entre dialogicidade e assimetria é muito complexo e define uma questão pedagogicamente muito relevante, sobretudo porque a assimetria pode se cristalizar em posições hierárquicas fixas, ao invés de circular em relações de autoridade onde a mediação seja constantemente renovada (Tommasi, 1995). Freire se detém sobre o risco de que os/as que se afirmam como lideranças adotem os instrumentos próprios da educação depositária, considerando os outros e as outras como puras incidências da sua ação política ou como vasos vazios para preencher de slogans, assumindo então uma atitude dogmática e autoritária. De fato, nos movimentos sociais também podem se encontrar marcas de autoritarismo, cada vez que, por exemplo, “as pessoas e os grupos incorporam a expectativa de que o chefe deve determinar o que os subalternos devem executar. E quando alguém disposto a mandar encontra outro disposto a se submeter” (Fleuri, 2009, p.172).
Mais em geral, os movimentos sociais, mesmo contribuindo para desconstruir subjetividades, relações sociais e pontos de vista dominantes sobre o mundo e para elaborar alternativas, podem manter várias formas de desigualdade ligadas ao gênero, à idade, à classe, à etnia e em relação a âmbitos como a estrutura da organização, a gestão dos recursos, os processos de tomada das decisões, etc (Motta & Esteves, 2014). Para desvelar e superar essas desigualdades, a imposição do silêncio do corpo, da palavra, da vontade, é importante valorizar as divergências e os conflitos que se expressam no interior do movimento; dar voz e visibilidade aos sujeitos aos quais geralmente são negadas; especialmente, refletir coletiva e permanentemente sobre as próprias práticas.
Movimentos sociais como sujeitos educativos e agentes de transformação
A segunda perspectiva de análise conduz a interrogar a função educativa dos movimentos sociais em relação à sociedade na qual se situam e que pretendem transformar. Qual é a relação entre educação e mudança social? Quem são os protagonistas dos processos de transformação social? Qual é a dinâmica da transformação que os movimentos sociais viabilizam?
Na pedagogia popular se reconhece aos oprimidos e às oprimidas um papel central na transformação da realidade. De fato, enquanto as/os opressoras/es tendem a manter o sistema injusto que garante seus privilégios, as/os oprimidas/os, sofrendo a opressão e seus efeitos, podem compreender a necessidade de lutar para superá-la (Freire, 1987).
A recusa da identificação com o ponto de vista do poder para a observação e a modificação da realidade marca um importante ponto de convergência entre a pedagogia freiriana e o feminismo. Muraro (1995), de fato, evidencia que o poder não tem toda a lucidez que se tende a atribuir-lhe, sendo preocupado apenas com sua própria manutenção e incremento, “enquanto ocorre que a impotência tenha do seu lado armas simbólicas que lhe permitem ver, lembrar e entender […], a impotência não simbolicamente desarmada é bem mais iluminante” (p.126; tradução minha).
A confiança que a pedagogia popular reserva aos/às oprimidos/as, porém, não é ingênua, mas assume uma dupla consciência: por um lado, experienciar uma concreta situação de opressão não implica necessariamente ter compreensão disso; nem a compreensão se traduz automaticamente na assunção de um compromisso para a mudança da realidade. Este compromisso, de fato, é frequentemente muito trabalhoso e exige um constante envolvimento pessoal. Por outro lado, toda opressão se mantém não apenas graças às/aos opressoras/es, mas também graças às/aos oprimidas/os. Segundo Freire (1987), de fato, os/as oprimidos/as hospedam a sombra do/a opressor/a, introjetam a ideologia dominante e identificam nos/as opressores/as seu modelo de humanidade. O medo da liberdade, ou seja, o medo de substituir a sombra do/a opressor/a com os conteúdos da sua própria autonomia e responsabilidade, conduz os/as oprimidos/as a ficarem vinculados à situação de opressão ou a emular os/às opressores/as, na tentativa de superar sua condição de desvantagem (ibidem).
Para entender os mecanismos de manutenção da opressão é útil também fazer referência ao conceito de hegemonia elaborado por Antonio Gramsci (2012) para explicar o “Consenso «espontâneo» dado pelas grandes massas da população à direção atribuída à vida social pelo grupo fundamentalmente dominante, consenso que nasce «historicamente» do prestígio (e então da confiança) decorrente da posição e da função do grupo dominante no mundo da produção” (p.57; tradução minha). A hegemonia, então, identifica uma condição social na qual todos os aspectos da realidade social são dominados ou submetidos à vantagem de uma única classe, sendo produzidos e difundidos entre as pessoas através de uma ação de condicionamento e de conquista do consenso, da qual são responsáveis principalmente as instituições da sociedade civil. A lei, a religião, os meios de comunicação de massa, a escola, portanto, não são neutros, mas legitimam a hegemonia existente, pela qual são, por sua vez, sustentadas (ibidem). Para Gramsci, porém, a hegemonia tem uma natureza dinâmica, é inacabada e seletiva, e além disso, existem momentos em que o sistema inteiro sofre uma crise. Portanto a hegemonia pode ser renegociada, renovada e recriada segundo formas que resultam muito eficazes em alguns momentos determinados (Mayo, 2008). A dimensão pedagógica – que é central na conservação da hegemonia e se expressa na aprendizagem de formas de vida, relações sociais e subjetividades hegemônicas – então se manifesta também na desaprendizagem de relações e práticas dominantes, e na aprendizagem de novas (Motta & Esteves, 2014).
Com relação a essas reflexões, precisamos esclarecer que a opressão é um conceito complexo e não se fundamenta unicamente no eixo de classe. O próprio Freire, desde seus primeiros escritos, valoriza o papel dos camponeses pobres do Nordeste e, graças também às observações das suas interlocutoras feministas, passa a reconhecer com mais força a polifonia das vozes e as diversas expressões de dominação (Mayo, 2008). De fato, as intelectuais feministas insistiram muito na necessidade de considerar a possibilidade de simultâneas e contraditórias posições de dominação (Weiler, 1991; bell hooks, 1994) e questionaram a própria noção de opressão. Por exemplo, Maria Giovanna Piano (2006) mostrou os riscos da fixação da consciência, que, depois de ter percebido o negativo, lhe permanece ligada, vinculando a ele cada representação de si e transformando-o em princípio único de identificação e qualidade existencial capaz de homologar sujeitos diferentes. De toda forma, hoje existe uma convergência bastante difusa acerca da necessidade de levar em consideração as intersecções entre classe, sexo-gênero, raça-etnia-cultura nos sistemas de dominação.
Neste ponto, é importante especificar que a mudança social, mesmo implicando um compromisso em primeira pessoa, não pode ser produzida pelos esforços individuais. Na Pedagogia da Esperança, Freire retoma um elemento fundamental da sua filosofia da educação: a concepção da história como possibilidade e a recusa de posições mecanicistas, redutíveis tanto ao fatalismo libertador– que compreende a consciência como puro reflexo da objetividade material – quanto ao subjetivismo idealista– que atribui à consciência um poder determinante sobre a realidade concreta. Neste sentido, a educação libertadora não pode, sozinha, garantir a mudança social. Mas favorece um conhecimento crítico, problematizante e desmitificante da realidade, desvendando seu caráter histórico e dinâmico e promovendo sua mudança por parte de mulheres e homens, seres em devir e inacabados (Freire, 2003).
A conscientização é um termo central na concepção freiriana da transformação social. Celso Beisiegel (2010) argumenta, de fato, que, desde sua primeira fase de elaboração teórica, Freire considera a educação como um processo de conscientização e reconhece centralidade ao tema do compromisso dos homens e das mulheres com a sua realidade. Apesar de ter sido frequentemente desentendida e interpretada em termos subjetivos ou psicológicos, a conscientização não indica uma simples tomada de consciência, da qual descenderia mecanicamente a mudança social. Ao contrário, implica uma superação da esfera espontânea da percepção da realidade e a inserção crítica na história, que não pode se realizar senão em uma dinâmica de ação e reflexão. De fato, somente a formação e o desenvolvimento de uma consciência capaz de apreender criticamente a realidade tornam possível a ação criadora dos seres humanos no mundo – através da qual se expressa sua plena humanidade; todavia, a formação e o desenvolvimento desta consciência dependem do enraizamento dos seres humanos na própria realidade e de um crescente compromisso com ela (ibidem).
Peter Mayo (2008), neste sentido, interpreta a conscientização como a formulação pedagógica da noção marxista de praxis e explica que, para que o processo educativo não mude apenas a consciência individual, mas contribua também para a transformação socio-política, é fundamental que se articule à ação social, realizada junto com um movimento ou com uma união estável e duradoura de movimentos. Os movimentos sociais, então, constituem “O mais amplo contexto geral no qual podem atuar com eficácia as iniciativas educativas de transformação social” (ibidem, 2008, p.85; tradução minha).
Movimentos sociais como laboratórios de decolonização dos saberes
Para abordar a terceira perspectiva, que identifica os movimentos sociais como laboratórios de decolonização dos saberes, é necessário antes examinar o conceito de colonialidade. Trata-se de uma categoria chave do pensamento decolonial, uma corrente de renovação crítica e utópica das ciências sociais nascida na América Latina nos anos noventa, a partir da reflexão de um grupo de intelectuais reunidos/as no coletivo modernidade-colonialidade (Ballestrin, 2013).
De acordo com Aníbal Quijano (2000), a colonialidade é o modelo de poder que se afirmou a partir da conquista da América e que se estruturou em torno de dois elementos: a naturalização da ideia de raça, uma estrutura biológica supostamente distinta que situa alguns/as numa situação de natural inferioridade em relação a outros/as; e a articulação das formas históricas de controle do trabalho em torno do capital e do mercado mundial, através da difusão do capitalismo. A colonialidade do poder, então, designa um sistema de dominação social baseado na exploração capitalista do trabalho e legitimado por uma classificação racial da população mundial, que coloca o homem branco europeu (ou europeizado) no topo da hierarquia racializada, seguido por mestiços e, ao fim, por indígenas e negros (Walsh, 2009).
Segundo Walter Mignolo (2002), um dos méritos principais de Quijano é o de ter identificado a colonialidade como lado obscuro da modernidade, sua dimensão central e constitutiva, e de ter situado a emergência do sistema do mundo moderno-colonial na afirmação do circuito comercial atlântico. Desta forma, o autor (ibidem) explicita as peculiaridades da colonialidade em relação ao colonialismo, enquanto dominação política e econômica de um povo ou de uma nação sobre outro:
O conceito de “colonialismo” considera a colonialidade como derivada da modernidade. Nesta linha de pensamento, a modernidade se concebe e, depois, surge o colonialismo. De outro lado, o período colonial implica que, nas Américas, o colonialismo acabou no primeiro quarto do século XIX. Sem dúvida, a colonialidade entende que a colonialidade é anterior à modernidade, que é um elemento constitutivo da mesma. E, por consequência, continuamos vivendo sob o mesmo regime. A colonialidade atual poderia ser considerada o lado oculto da pós-modernidade e, neste sentido, a pós-colonialidade se remeteria à transformação da colonialidade em colonialidade global, do mesmo modo que a pós-modernidade designa a transformação da modernidade em novas formas de globalização. [...] Resumindo, o colonialismo sai de cena depois da primeira onda de decolonizações (os Estados Unidos, Haiti e os países latino-americanos) e da segunda onda (a Índia, a Argélia, a Nigéria, etc), enquanto a colonialidade continua viva e forte na atual estrutura global.
(p. 65; tradução minha)
Em continuidade com essas reflexões, Catherine Walsh (2013) propõe o uso da categoria decolonial para indicar, diante da persistência dos modelos e das marcas coloniais, um caminho de luta permanente, em que se podem encontrar posições, horizontes, construções alternativas, projetos de resistência, transgressão e criação.
A colonialidade atravessa todos os âmbitos da existência, mesmo que a sua ação possa ser entendida a partir de algumas áreas principais (Walsh, 2009). Por exemplo, a colonialidade do ser se exercita através da inferiorização, a subalternização, a desumanização, pondo em dúvida o valor humano, a razão e as faculdades cognitivas dos sujeitos colonizados (Maldonado-Torres, 2007). A colonialidade cosmogônica se funda na divisão binária entre natureza e sociedade e na consequente eliminação dos componentes mágico-espirituais que embasam a esfera social e os sistemas integrais da vida (Walsh, 2009). María Lugones (2010) argumenta que a hierarquia binária entre humano e não humano constitui a dicotomia central da modernidade colonial. Com base nisso, o homem europeu, branco e burguês foi assumido como ideal de civilização e expressão de plena humanidade. Em referência a ele, as mulheres brancas foram julgadas como a inversão humana dos homens; os homens colonizados como não-humanos, porque não-homens; as mulheres colonizadas como não-humanas, porque não não-homens. Na leitura proposta por Lugones (2008), portanto, o gênero – enquanto sistema binário de separação dos seres humanos em homens e mulheres em base a traços biológicos, associado à heteronormatividade – é uma construção colonial, racialmente diferenciada e fictícia, como a categoria de raça. Desta maneira, a autora complexifica o conceito de colonialidade de um ponto de vista feminista, introduzindo a noção de colonialidade do gênero para entender a intersecção gênero-classe-raça como uma construção central do sistema de poder do mundo capitalista.
A categoria de colonialidade do saberé particularmente importante no pensamento decolonial. Ela identifica a imposição do eurocentrismo como ordem exclusiva de pensamento; a exclusão de outras racionalidades epistêmicas e outros saberes (Quijano, 2000); a penetração da colonialidade nas perspectivas epistemológicas, acadêmicas e disciplinares (Walsh, 2009). Segundo Quijano (2000), a repressão das formas de produção do conhecimento das/os colonizadas/os, de seus sistemas de sentido, do seu universo simbólico e das suas formas de expressão foi a forma mais profunda e duradoura de violência contra os povos indígenas, especialmente da América e da África. As/os colonizadas/os foram obrigadas/os a aprender a cultura dos/as dominadores/as em tudo o que fosse útil para a reprodução da dominação. A longo prazo, isso implicou a colonização das perspectivas cognitivas, do imaginário e do universo das relações intersubjetivas. Através do mito da civilização como trajetória humana, que parte do estado de natureza e culmina com a Europa, a modernidade e a racionalidade foram imaginadas como experiências e produtos exclusivamente europeus. Além disso, as relações intersubjetivas e culturais entre a Europa – especialmente a Europa Ocidental – e o resto do mundo foram codificadas não como diferenças históricas, mas através da naturalização de categorias como Oriente-Ocidente, primitivo-civilizado, mágico-científico, irracional-racional, tradicional-moderno.
Nesse sentido, Boaventura de Sousa Santos (2010) define o pensamento moderno-ocidental como um pensamento abissal, na medida em que estabelece divisões radicais, de modo que os saberes que ficam “do outro lado da linha” – os saberes populares, femininos, camponeses, indígenas, etc – desaparecem da realidade, tornam-se inexistentes e são expulsos também daquilo que é legitimado como conhecimento alternativo no interior do universo simbólico dominante. A categoria Oriente, de fato, é a única com a dignidade suficiente para ser o Outro, mesmo que inferior por definição. Por outro lado, os/as índios/as e os/as negros/as são associados/as a saberes incomensuráveis e incompreensíveis: crenças, opiniões, magia, idolatria, compreensões intuitivas e subjetivas. A negação epistemológica, então, se articula com a negação ontológica (ibidem).
Neste quadro, as práticas pedagógicas decoloniais são aquelas que desnorteiam a razão única da modernidade ocidental, que se esforçam em transgredir a negação ontológico-existencial, epistêmica e cosmogônico-espiritual, que pensam a partir de e com genealogias, racionalidades, saberes, sistemas de civilização e de vida radicalmente outros(Walsh, 2013). Estas pedagogias são produzidas em contextos de marginalização, resistência e luta. As lutas sociais, de fato, constituem o cenário pedagógico por excelência onde as/os participantes exercem suas pedagogias de desaprendizagem, reaprendizagem e aprendizagem(ibidem).
Em particular, a vocação decolonial-pedagógica dos movimentos sociais se articula em dois momentos: 1) um desconstrutivo das pedagogias dominantes, que se baseiam no silenciamento epistemológico e na negação ontológica de tudo que não se encaixa na monológica e violenta geopolítica do conhecimento capitalista-colonial e no seu sujeito consciente individualizado, europeizado, masculinizado e racionalmente capaz de controlar emoções e desejos (Motta & Esteves, 2014). 2) O outro construtivo das alternativas que emergem das comunidades e dos sujeitos que expressam saberes encarnados, orais, populares, espirituais, locais e outras formas de se relacionar com o eu, a terra, a/o outra/o, o cosmo (ibidem). A construção de alternativas é uma prática de longa duração, que implica a mobilização de todos os recursos intelectuais possíveis, tanto para avançar na análise e na compreensão, quanto para dar impulso a ações de mudança (Walsh, 2013).
Um exemplo de encontro entre pedagógico e decolonial na prática dos movimentos sociais é indicado por Walsh (ibidem) na memória coletiva. A referência específica da autora é ao uso da memória coletiva nos movimentos afrodescendentes do Pacífico equatorial, afetado pelas cumplicidades construídas entre narcotraficantes, interesses capitalistas e extrativistas, e na indiferença do Estado.
Recuperar, reconstruir e fazer re-viver a memória coletiva sobre território e direito ancestrais, fazendo desta recuperação, reconstrução e revivência processos pedagógicos coletivos, permitiu consolidar compreensões sobre resistência-existência frente ao vasto horizonte colonial e relacioná-las ao momento atual. Contribuiu também para restabelecer e reforçar relações de aprendizagem inter-geracional e, por sua vez, de gerar reflexões sobre caminhos pedagógicos-práticos para se construir e seguir. Escrever esta memória coletiva, isto é, colocar em palavras as memórias e os ensinamentos que vêm da tradição oral para seu uso [...] foi um componente chave na pedagogização afro-decolonial. [...] O propósito [...] é postular e posicionar o significado profundo e vivido da diferença afro-ancestral, não como relíquia ou patrimônio do passado, mas como existência atual enraizada no território, de onde ainda confluem saberes, cosmovisões, espiritualidades e o bem-estar coletivo.
(pp. 64-65; tradução minha)
Movimentos sociais como espaços gerativos de teorias pedagógicas
A partir das reflexões até aqui expostas, é possível formular uma última significativa pergunta: na sua realidade de contextos onde se vivem juntas/os processos multidimensionáis, problematizantes e sempre inacabados de aprendizagens; na sua interlocução conflitante e transformadora com a sociedade; na sua luta decolonial finalizada a transgredir e superar os dispositivos coloniais que atravessam todas as esferas da existência, os movimentos sociais podem se tornar lugares de teorização e mais especificadamente de teorização pedagógica?
Com certeza essa pregunta pressupõe a disponibilidade para questionar o paradigma dominante de elaboração do pensamento que decreta a superioridade da teoria sobre a prática, que deve ser “modelada” com base na aplicação da primeira. A subversão desse paradigma tem no feminismo um ponto de referência essencial. De acordo com Anna Maria Piussi (2011), de fato, para o feminismo a teoria é a mediação conceitual que permite nomear as práticas do movimento político das mulheres.
A educação popular de inspiração freiriana oferece um exemplo emblemático para explorar o papel dos movimentos sociais como espaços gerativos de teórias pedagógicas. A pedagogia freiriana pois se configura como uma pedagogia de movimento, no sentido que é gerada, problematizada e reformulada a partir das práticas dos movimentos sociais (Streck, 2009). Esta característica é testemunhada antes de tudo pela trajetória existencial de Freire, intimamente ligada à sua elaboração teórica (Freire, 2003). Sua concepção político-pedagógica pode ser adequadamente entendida somente em relação aos movimentos sociais nos quais o pensador brasileiro se engajou e à realidade de participação popular em que eles se inseriam.
Em particular, Danilo Streck (2009) identifica três grandes momentos de construção da obra de Freire, a partir da sua relação com os movimentos sociais: “a emersão do popular na América Latina”, “a universalização da obra freiriana” e “o compromisso pela democratização e os direitos humanos na sua pátria”. A primeira fase se refere às décadas de cinquenta e sessenta e, em particular, aos anos imediatamente precedentes ao golpe de 1964. Neste período, na América Latina, os governos populistas incentivavam a inclusão das massas populares na sociedade que até aquele momento as tinha excluído, favorecendo formas de mobilização popular, que – se bem que funcionalmente orientadas à realização das reformas de modernização, à promoção do progresso econômico e à manutenção dos interesses ao poder – acabarão abrindo espaços de participação imprevistos (ibidem). Carlos Brandão e Raiane Assumpção (2009) esclarecem que, para além da política dos governos populistas e da constituição de novas formas de organização das classes populares, outro elemento fundamental para a emergência histórica da educação popular é a constituição de um grupo de intelectuais militantes ligadas/os ao mundo estudantil, universitário, religioso e partidário. Neste sentido a educação popular nasce como um movimento de educadoras/es comprometidas/os em realizar um trabalho político junto com as classes populares através da educação (ibidem). Os movimentos socioeducativos nestes anos são muito ligados à ação governamental. As/os autoras/es apontam numerosas iniciatívas mas é sobretudo no Movimento de Cultura Popular (MPA) que Freire se envolve mais, como co-fundador e coordenador da Divisão de Educação antes, e depois da Divisão de Pesquisa e do projeto de Educação dos Adultos. O objetivo principal do MPA é democratizar o saber e a cultura e favorecer o acesso à educação através de um trabalho pedagógico com e para as classes populares (Araújo, 2005). Estas iniciativas político-pedagógicas objetivam revolucionar os modelos tradicionais e hegemônicos dos programas educativos dirigidos “aos setores menos avantajados da sociedade” que, moldados por uma lógica compensatória, reafirmam de fato sua subordinação (Brandão & Assumpção, 2009). A utopia que as anima é fazer vir à tona e sistematizar, em forte colaboração com as classes populares e nos espaços da sua organização, um saber enraizado na cultura do povo, num processo que parte de baixo, transformativo do inteiro projeto educativo e, em síntese, da própria sociedade (ibidem).
Pela primeira vez surge a proposta de uma educação que é popular não porque o seu trabalho se dirige a operários e camponeses prematuramente excluídos da escola seriada, mas porque o que ela “ensina” vincula-se organicamente à possibilidade de criação de um saber popular, por meio da conquista de uma educação de classe, instrumento de uma nova hegemonia.
(ibidem, p.32)
Freire, que nesta época é diretor do Serviço de Extensão Cultural (SESC) da Universidade de Pernambuco, é convidado pelo Governo do Rio Grande do Norte para realizar uma campanha de alfabetização dos/as adultos/as, financiada pela Aliança para o Progresso, um contraditório programa de ajudas financeiras promovido pelos Estados Unidos. Desta oferta começa a histórica experiência de Angicos, onde o método Freire de alfabetização-conscientização é usado sistematicamente pela primeira vez, permitindo a alfabetização em tempo recorde de 300 adultos/as, operários, donas de casa, lavadeiras, artesãos. Depois deste sucesso, o governo nacional encarrega Freire da coordenação do Plano Nacional de Alfabetização. Mas os sonhos, as transformações, as formas de participação inéditas vividas naqueles anos são bruscamente interrompidos pelo golpe de estado de 1964, que, depondo o governo de João Goulart, instaura vinte anos de ditadura militar no Brasil (Vittoria, 2011).
Contudo, a sofrida experiência do exílio – à qual o Freire é obrigado junto com muitas/os outras/os Brasileiras/os por seu compromisso “subversivo” a serviço do povo – em formas não previstas pela violência que reafirma a ordem constituída, torna-se condição de possibilidade não apenas da radicalização e aprofundamento teórico do seu pensamento, mas também para sua universalização (Streck, 2009). Nos anos do exílio e graças especialmente ao seu trabalho no Conselho Mundial das Igrejas, Freire vive e viaja em diversos países, renovando e reelaborando sua perspectiva político-pedagógica, à luz dos desafios atuais dos contextos “emprestados” e da discussão com intelectuais e movimentos sociais dos cinco continentes: movimentos pela independência das ex-colônias portuguesas na África; comunidades de migrantes na França e na Suíça; movimentos operários na Itália; movimentos para os direitos civis nos Estados Unidos (Freire, 2003). Em Pedagogia da Esperança, por exemplo, Freire explicita a influência que exercitaram as críticas das pensadoras feministas em relação ao uso do masculino “neutro” nos escritos dele, sobre sua compreensão do papel da transformação da linguagem na transformação do mundo, motivando assim o uso conjunto de feminino e masculino que começa a adoptar nas suas últimas obras. A influência das reflexões e das práticas feministas se expressa também na complexificação e crescente des-essencialização do conceito de opressão, entendido cada vez mais como um enredo de múltiplas e controversas posições de dominação (Weiler, 1991; Bell Hooks, 1994;). De forma parecida, na última parte da produção freiriana, registra-se uma sensibilidade mais profunda a respeito da dimensão étnico-cultural das relações de dominação, denunciada com muita força na cena internacional pelo movimento negro e pelos movimentos pelos direitos civis (Mayo, 2008).
Como assinala Streck (2009), a pedagogia de Freire se configura como uma pedagogia de movimento também num sentido profundamente existencial: é uma pedagogia que nasce de deslocamentos, atravessamentos, partidas, retornos, e tráficos de ideias. Em 1979, com a anistia possibilitada pela reabertura democrática, Freire retorna ao Brasil e retoma seu compromisso pela democratização e os direitos humanos (ibidem). Por cerca de dois anos dirige a Secretaria da Educação de São Paulo, durante o governo de Luiza Erundina do Partido dos Trabalhadores – que também contribui para criar. As transformações que inicia em favor da escola pública são baseadas em quatro áreas de ação: a democratização do acesso à escola, a melhoria da qualidade da educação, a democratização da gestão das escolas municipais, a promoção de um movimento de alfabetização de jovens e adultos (MOVA-SP), que logo inspira iniciativas parecidas em outras cidades (Torres, O’ Cadiz, Wong, 2002).
Os anos oitenta são caracterizados por uma renovada efervescência dos movimentos sociais, depois de quase duas décadas de clandestinidade, resistência e um silencioso trabalho político-educativo levado adiante pelas organizações da esquerda de base e especialmente pela Igreja progressista da Teologia da Libertação, que influencia Freire e é por ele influenciada. Os movimentos sociais emergem novamente na cena brasileira, com muito mais autonomia em relação ao poder estadual. Como testemunho da profunda confiança que Freire põe nos movimentos sociais como agentes de transformações políticas e educativas, muitos/as comentadores/as citam a última entrevista concedida pelo pensador brasileiro poucos dias antes de morrer, quando, a propósito de uma marcha realizada pelo MST na capital, afirma:
Eu estou absolutamente feliz por estar vivo ainda e acompanhar essa marcha, que, como outras marchas históricas, revelam o ímpeto da vontade amorosa de mudar o mundo, dessa marcha dos chamados Sem Terra. Eu morreria feliz se visse o Brasil, cheio em seu tempo histórico, de marchas. [...] Os Sem Terra constituem para mim hoje uma das expressões mais fortes da vida política e da vida cívica desse país. [...] O que eles estão, mais uma vez, é provando certas afirmações teóricas de analistas políticos, de que é preciso mesmo brigar para que se obtenha um mínimo de transformação.
(entrevista concedida dia 17 de abril de 1997 a Luciana Burlamaqui da TV PUC)
Por outro lado, com base no que foi auspiciado pelo próprio Freire, os movimentos sociais continuam sendo não apenas herdeiros do seu pensamento, mas também seus reinventores. De fato, a proposta freiriana se afirma até hoje pela eficâcia com que facilita, a partir de situações concretas e dialógicas de participação, a elaboração de contribuições teóricas e metodológicas, que a ampliam, a recriam, a conectam com outras matrizes de pensamento crítico (Manfredi, 2009).
Conclusões
As reflexões destas páginas foram guiadas por uma ideia central: os movimentos sociais são lugares privilegiados de educação, especialmente com relação a pessoas jovens e adultas. A partir desse pressuposto, explorei a complexa ligação entre movimentos sociais e educação com base num referencial teórico que articula as contribuições da pedagogia popular, das teorias feministas e do pensamento decolonial. Portanto interpretei os movimentos sociais como contextos de aprendizagens, sujeitos educativos, laboratórios de decolonização dos saberes e espaços gerativos de teorias pedagógicas. Trata-se de dimensões interdepentes que apresentam muitas sobreposições. A importância de argumentar seu laço constitutivo com a educação crítica, surge da necessidade de circunscrever as especificidades dos movimentos sociais como espaços de exercício crítico da cidadania, com o objetivo de sustentar suas práticas diante de crescentes injustiças, da precarização da existência humana e da emergência de novos agregados políticos que, mesmo reivindicando raízes populares, não educam para ler criticamente o mundo e para transformá-lo.
Referências
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[1] Esse artigo é dedicado à memória de Marielle Franco, ativista afro-brasileira assassinada no dia 14 de março de 2018 no Rio de Janeiro.
[2] Com realação à realidade italiana, pode se citar por exemplo a imposição da obrigatoriedade das vacinas para as crianças até com a ameaça de excluí-las da escola, sem nenhuma abertura para os pontos de vista divergentes expressados por parte de muitas cidadãs e cidadãos, na maioria dos casos pais dessas crianças, que continuam sendo tachados de ser ignorantes, contrários à ciência e fanáticos.